quinta-feira, 20 de julho de 2017

Ressurreição de Ícaro [poema de Hermes Fontes]

RESSURREIÇÃO DE ÍCARO
Hermes Fontes (1888-1930)

Herbert James Draper, “The Lament for Icarus” (1898).
Fonte: Wikipedia.
Ícaro pôs o olhar no Azul infindo
e no esplêndido sol que a fímbria azul redoura
ao claror da alvorada
e enche toda a amplidão do céu, ao Meio-Dia.
O tempo estava lindo.
E a terra, de ouro fúlgido toucada,
estava linda, estava encantadora.

Dir-se-ia
do Sol, que está fulgindo
à Terra, ingênua, que se adorna e touca,
ser alguém que está rindo
a rubra, a escandalosa gargalhada
do Orgulho e da Ironia.

O disco astral era radiosa boca
jorrando risos de ouro para o mundo:

Ícaro se encontrou trêmulo e frio,
o homem sentiu-se inútil e infecundo.

E, entendendo o desdém por desafio,
consigo mesmo concentrou-se, a fundo.

Olhando o voo às aves e aos insetos,
fechou os olhos para o seu destino:
– Teve a vertigem dos alucinados…

E previu novos céus, além do céu visível,
repletos de astros múltiplos, repletos
de orbes irrevelados.

Mas, ao querer tocá-los – impossível!
Sentia os pés chumbados
à gleba do Planeta,
à lei do destino…

Sob o anátema, ao peso da grilheta,
Ícaro se julgou deveras pequenino.

Veio o desejo cego, a ideia ousada
de pôr aos ombros um par de asas. Veio
dessa ideia arrojada
a pleno espaço, em meio à luz, em meio
à ondulação aérea inavegada,
em meio aos imprevistos e aos mistérios
sidéreos.

O homem levara à Abóbada encantada
o seu grito de guerra:

Havia de arrancar ao Sol candente e vivo
o motivo
daquela escandalosa gargalhada
à pequenez humílima da Terra.

Ícaro pôs o olhar no Espaço infindo,
no momento em que o Sol – fiel da eterna balança –
pende, aos poucos, descansa
na concha vesperal, em que a Terra se doura.

O dia estava lindo.
A tarde fez-se linda e encantadora,
e Ícaro foi subindo, foi subindo...

E, enquanto o herói subia
para quebrar ao sol os ígneos raios,
entardecia, pouco a pouco, entardecia.
O dia
tinha, um sobre o outro, os seus agônicos desmaios.

Mas, na loucura de subir, nem vira
na cega aspiração com que ascendera,
que as suas asas eram de mentira,
eram asas efêmeras de cera.

A tarde estava linda.
No braseiro do Ocaso, ao longe, ainda,
ruborejavam dois ou três milhões de brasas.
Ícaro, lentamente
e ousadamente,
foi procurando o Poente,
com a incerteza hostil daquelas asas.

O Sol, que ia baixar às paragens tranquilas,
antes de libertar, em lúcida revoada,
os passarinhos brancos das estrelas,
notou a temerária, intrépida escalada
daquelas asas novas.

E, para dissuadi-las
de novas experiências, de outras provas,
mandou um dos seus raios derretê-las.

E deu-se aquela queda desastrada
sob o sorriso ingênuo das estrelas
que abriam as pupilas…

E foi-se o sonho mentiroso e pícaro,
que o sol inflama, o sol derrete, o sol condena
a diluir-se no oceano.

Efêmeras e eternas asas de Ícaro,
imagem dupla do Desejo humano.

A cera dessas asas redentoras,
frágeis como uma antena,
asas de pousamouras,
não se diluiu no mar, caiu no seio
das gerações futuras!

Cera das asas de Ícaro! Semente
das grandes Aventuras!
Gota que fez a fonte e originou o veio
que vai dar ao estuário do Porvir…

Ícaro voa ainda. Triunfalmente,
continua a subir.

Continua a subir, em voo suave,
isócrono, consciente.

Na glorificação tranquila da Aeronave,
Ícaro ressurgiu definitivamente.

Agora, o próprio Sol, na Realidade
daquele desafio vingador,
glorifica e eterniza a efêmera vaidade
do Primeiro Voador.


In: FONTES, Hermes. Poesias Escolhidas. Com um Pequeno Retrato de Hermes Fontes por Oliveira e Lima. [Rio de Janeiro]: Epasa, [1944]. p. 112-117.

Hermes Fontes nasceu em Boquim, SE (1888) e faleceu no Rio de Janeiro, RJ (1930). Formado em direito (1911), foi poeta, caricaturista, jornalista, funcionário público. Mais sobre ele aqui: https://pt.wikipedia.org/wiki/Hermes_Fontes.

Nota: Atualizei a grafia para a atualmente em vigor no Brasil; conservei a pontuação original, mantendo também o uso de maiúsculas em certos termos, de acordo com a edição consultada.

Santarém, PA, 20/7/2017. Leia e curta também no Wordpress.

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