sábado, 21 de janeiro de 2017

Poema sem Título [Charles Simic]

POEMA SEM TÍTULO
(Poem Without A Title)
Charles Simic
Tradução de Júlio César Pedrosa
Pergunto ao chumbo:
Por que te deixaste
Converter em bala?
Esqueceste os alquimistas?
Abandonaste a esperança
De converter-te em ouro?

Ninguém responde.
Chumbo. Bala. Com nomes
Como estes
O sono é longo e profundo.

Traduzido da versão espanhola de Isaías Garde, a qual junto com o original inglês está disponível aqui: http://zoonphonanta.blogspot.com.br/2017/01/charles-simic-poema-sin-titulo.html.
O autor: Charles Simic é um poeta estadunidense nascido em Belgrado, Sérvia, em 1938. Emigrou com a família para os EUA em 1954. Mais sobre ele aqui: https://en.wikipedia.org/wiki/Charles_Simic.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Santarenices

BEMERGUY, Emir Hermes. Santarenices: coisas de Santarém. Apresentações de Lila Bemerguy, José Seixas Lourenço e Cristovam Sena. Santarém (PA): Instituto Cultural Boanerges Sena, 2010. 23 cm. 294 p.

Coletânea de artigos de Emir H. Bemerguy (1933-2012) publicados em jornais de Belém e Santarém do Pará e acrescidos de escritos inéditos.
Nascido em Fordlândia (distrito do município paraense de Aveiro), formado em odontologia e também professor respeitado, o autor viveu a maior parte de sua vida em Santarém, também no Pará, onde produziu vasta obra em verso e prosa e se tornou um dos principais nomes da literatura santarena do século XX e início do XXI.
Os artigos reunidos nesta obra distribuem-se por um período de mais de 40 anos, abrangendo assuntos os mais variados, de política a ecologia, passando por literatura, história, esportes e religião, além de pequenas biografias de personagens célebres de Santarém que foram seus contemporâneos.
Leitura obrigatória para quem deseja conhecer a história e cultura de Santarém, principalmente o que ocorreu e se fez nas últimas décadas.
Opinião:
“Santarém, evidentemente, oferece um espetáculo natural de características peculiares e atrativos culturais que todos podem ver e sentir. Mas há coisas das ‘santarenices’ que só a acuidade e o texto poético de Emir Bemerguy podem traduzir” (José Seixas Lourenço, ex-reitor da UFPA e da Ufopa, p. I).
Excerto:
“COCHICHO INAUGURAL
“Este livro estava pronto desde 1975, à espera de um milagre para ser publicado. Tenho mais umas vinte obras diversas, dormindo em gavetas e apreciadas somente por cupins analfabetos.
“O prodígio da edição fácil aconteceu através de meu grande amigo Cristovam Sena, que resolveu, espontaneamente, conseguir patrocinadores, digitar e concluir o trabalho. Só assim os meus textos insossos ficariam perenizados em um volume decente.
“Tive que recorrer a um neologismo, inventado na hora, para dar um título a este livro. Como já criara um outro – ‘SANTARENIDADE’ – objetivando expressar o estado d’alma que marca o mocorongo legítimo, o nato ou de arribação – julguei-me com o direito de partir para um novo atrevimento semântico.
“‘SANTARENICES’ – coisas de Santarém. Uma espécie de sótão da casa velha, onde há lugar para tudo. Apenas para situar bem a época em que escrevo, incluí no volume uma apreciação sobre a cidade, agora. É a crônica denominada ‘Santarém… Ontem… Hoje… Amanhã…’ Achei bom agir assim, pois dentro de uma ou duas décadas isto aqui não poderá ser lido com total indiferença: ou se zombará de tudo, por ser anacrônico, bolorento, ou se enxugarão lágrimas que a saudade, mansamente, há de semear pelos olhos, colhendo-as no coração.
“Era este o cochicho inaugural. Podemos falar mais alto.
“Santarém, fevereiro de 2010” (p. 7)

Mais do/sobre o autor no blogue http://bemerguyemir.blogspot.com.br.
Texto publicado originalmente no Orelha de Livro: http://www.orelhadelivro.com.br/livros/696054/santarenices-coisas-de-santarem/.

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Pesadelo em Nova Iorque

Não costumo sonhar. Melhor dizendo, raramente me lembro dos sonhos que tenho. Mas há poucos dias tive um sonho – ou pesadelo – que me deixou lembranças bem vivas, por isso eu o conto aqui enquanto ainda me lembro dele.
Sonhei que estava em Nova Iorque (New York, para os habitués). Eu e minha esposa tínhamos viajado para lá a fim de participar de uma festividade, talvez de fim de ano, sei lá, não tenho certeza do porquê. Também não sei como chegamos lá – de avião, imagino. Mas nada de neve, apenas fazia frio e o tempo estava fechado, nebuloso – isto quando não estava chovendo torrencialmente. Os States enfrentavam uma temporada de chuvas fora do comum.
Chegamos muito cansados e minha esposa ficou no hotel. Eu saí para dar um rolê pela Big Apple. Entrei num ônibus e fiquei circulando pela cidade, numa viagem que parecia não ter fim.
Ruas e avenidas apinhadas de gente e carros, prédios altíssimos, um trânsito infernal. De repente começou a chover. As pessoas fugiam da chuva e as ruas se enchiam de água. Chuva cada vez mais forte. O tráfego ficou mais lento até que parou de vez. Lembrei-me dos congestionamentos de São Paulo em dias de chuva.
(Longe de mim a audácia de querer comparar uma metrópole subdesenvolvida como São Paulo com a Meca do Mundo Livre... mas é a única referência que tenho!)
O ônibus estava parado em cima de um viaduto. Da fileira de carros vinha um buzinaço sem fim, interrompido pelos trovões. Olhei pela janela e estremeci: a avenida de várias pistas sob o viaduto agora era um rio caudaloso. Carros e pessoas eram levados pela corrente, gente passava agarrada a objetos flutuantes. Um ônibus gigantesco e de feitio futurista, amarelo e bastante envidraçado, cheio de gente que gritava desesperada, vinha flutuando, jogado para lá e para cá pela água como uma barca ou balsa. Foi arremessado contra as pilastras do viaduto e se despedaçou, cuspindo os passageiros para todos os lados.
A chuva caía sem cessar. Escurecia. O tempo passava e eu tentava falar com minha esposa, mas o telefone celular não completava a ligação. No meu ônibus, os passageiros se desesperavam. Uns ouviam pelo rádio que o alagamento tomava conta não só de Nova Iorque, mas de grande parte do país. Outros liam nos telefones as notícias sobre as mortes por afogamento, os desabamentos... Depois as comunicações se interromperam, silenciando-se.
(Não sei como eu entendia o que diziam, pois não falo inglês.)
Estávamos num lugar alto, o viaduto, a salvo da enchente. Ainda chovia e equipes de salvamento surgiam de vários lados para resgatar os que se afogavam, tirando-os dos carros ou da água que enchia as ruas. O motorista abriu a porta do ônibus e entraram militares fardados. Um deles era de origem asiática, tinha um fuzil a tiracolo e uma pistola na cintura. Encarou-me como se me conhecesse, e eu o reconheci imediatamente: ele tinha servido comigo num batalhão de infantaria do Exército Brasileiro, em 1991! Não conseguia lembrar do nome dele. Meia dúzia dos companheiros de minha companhia de fuzileiros eram de origem japonesa. Aquele era o Miyagi? Era o Katsuhiro? O Urozaki? Yashida? Toshio? Ednélson? Sei lá... era um daqueles japas. Mas o que fazia ali?
– Você por aqui? – disse o ex-colega fuzileiro.
– Pois é... E você?!
– Você ainda é um guerreiro? Um soldado?
– Acho que sim... – disse eu, sem saber bem o que dizer e lembrando daquele ano de treinamento militar.
– Ótimo! Você está convocado como voluntário da Guarda Nacional dos Estados Unidos da América. :D
– !? :(
Saímos do ônibus acompanhados de outros “voluntários” e seguimos em fila entre carros parados. A chuva diminuía; as ruas estavam cheias de entulho, lama e corpos. Entramos num ônibus militar grande e alto, com rodas enormes, já cheio de outros alistados compulsoriamente. Deram a partida e seguimos à toda pelas ruas alagadas e sujas, escuras e com pouca gente. O ex-colega japonês tinha sumido e a tropa do ônibus estava sob a comando de uma mulher, cuja patente não reconheci e de cuja fisionomia não me lembro.
O veículo parou. Descemos e seguimos andando em fila entre mais lama, escombros e pessoas encolhidas, chorando e gritando de frio, enroladas em cobertores, ao lado de corpos de parentes ou conhecidos mortos. Casas e pequenos prédios haviam caído pela força da água, lugares baixos – inclusive o metrô – estavam alagados, agentes da defesa civil distribuíam comida e roupas. O cenário era de guerra, um cataclismo. Não havia eletricidade. A luz vinha de lamparinas e fogueiras dentro de latões de lixo e a única comunicação era feita pelos rádios dos militares.
Entramos numa sala enorme, onde receberíamos equipamento. Estava cheia de gente, homens e mulheres com idades de 20 a 45 anos. Cerca de metade dos “voluntários” eram estrangeiros, supostamente turistas. Destes – além de asiáticos, africanos e europeus – a maior parte era de latino-americanos, o que se percebia pela língua que falavam. Eram negros, brancos, índios e mestiços de todos os matizes. A mulher que viera conosco no ônibus comandava tudo, distribuindo ordens, roupas, armas e ferramentas.
Um sujeito barbudo puxou conversa.
– “¿Dónde eres?”
– “De Brasil.”
– “Soy de Puerto Canal.” (Não sei se essa cidade existe, mas algo me dizia que ele era do Panamá.) Só pude soltar uma pergunta tola que me estava na ponta da língua:
– “¿Panamá ha hecho el Canal o el Canal ha hecho a Panamá?”
Ele a princípio sorriu, depois emendou uma enorme gargalhada, seguida por vários dos que estavam presentes. Nós todos sabíamos que o (Canal do) Panamá tinha sido feito pelos ianques – à força!
Outros entraram na conversa, cada um falando sua língua. Curiosamente, nós nos entendíamos. Vestíamos as fardas e testávamos o equipamento, enquanto conversávamos. Nossa equipe era a do trabalho pesado: iríamos sair para efetuar os salvamentos, arrombando portas, arrancando janelas e tirando pessoas que não tinham conseguido sair de casa. Outro grupo teria a tarefa de coibir saques ao comércio e residências.
Estávamos saindo para a primeira missão, quando...
... acordei com as lambidas de nosso cachorro, o Thor! Eu estava com a garganta seca, rouco e com um horrível gosto de cabo de guarda-chuva na boca. E uma tremenda azia!
Uma pena que não pude sonhar até o fim, para saber o final da história. Mas o sonho, ainda que interrompido, deu-me muito o que pensar. Nunca pensei que, mesmo num sonho, eu seria “voluntário” da Guarda Nacional dos EUA numa enchente em Nova Iorque.
Logo eu, que nunca tive a menor vontade de conhecer os Estados Unidos...
Talvez Freud explique isso.

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

O que Jesus (não) disse… e o que (não) se pôs no papel

EHRMAN, Bart D. O que Jesus disse? O que Jesus não disse?: Quem mudou a Bíblia e por quê. Rio de Janeiro: Pocket Ouro, 2008. 309 p.[Misquoting Jesus: The story behind who changed the Bible and why. Harper One, 2005.]
Livro muito interessante e instrutivo… e para pessoas de mente aberta!
O autor, Bart D. Ehrman, é um grande especialista e divulgador científico dos métodos de crítica textual aplicados aos textos bíblicos, principalmente os manuscritos do Novo Testamento em grego. Os mais antigos são do século IV, portanto cerca de 300 anos depois dos eventos narrados – nenhum manuscrito conhecido é autógrafo, ou seja, o papiro ou pergaminho original. Existem apenas cópias das cópias das cópias das cópias das cópias das cópias…
Segundo o autor, já foram catalogados pelos especialistas mais de 5.700 manuscritos neotestamentários em grego, desde simples versículos isolados até coleções inteiras do Novo Testamento; nenhum códice é idêntico a outro, e os cálculos levam a mais de 400.000 variantes!
A maior parte delas diz respeito a erros de grafia, inversão acidental de termos ou frases, troca de letras, escorregões, deslizes da pena por pouco conhecimento da escrita, fadiga, enfado… São erros que não afetam a compreensão do texto.
Os problemas estão nas variantes propositais, feitas para direcionar o texto para a defesa ou condenação das diversas vertentes do cristianismo concorrentes nos primeiros séculos da Era Cristã (ou Era Comum).
O Deus cristão era o mesmo Deus dos judeus ou era outro? Jesus era humano, divino ou ambas as coisas ao mesmo tempo? Tinha um corpo humano ou apenas aparente? Como era/deveria ser a participação das mulheres na igreja nascente? Os judeus também podiam ser salvos por Cristo? Estas e outras questões mais eram discutidas à saciedade pelos primeiros cristãos e seus detratores pagãos.
Além dos próprios textos, o cristianismo é também baseado em tradições de leitura e interpretação textual: alterações se fixaram nos textos e criaram a religião conhecida hoje; leituras foram feitas, opiniões se firmaram e disso se criaram as bases dos dogmas das igrejas (não apenas a Católica).
Leitura para pessoas de mente aberta – sejam crentes ou agnósticas, católicas ou protestantes – e cientes de que “quem conta um conto, aumenta um ponto”.

Texto publicado originalmente com o título Para Pessoas de Mente Aberta no Skoob: https://www.skoob.com.br/livro/resenhas/3864/edicao:230303.