quinta-feira, 14 de julho de 2016

Salomé [poema de Martins Fontes]

Benozzo Gozzoli, “A dança de Salomé e a decapitação de São João Batista” (1461-62).
Fonte:
https://figurasdaficcao.wordpress.com.
SALOMÉ
Martins Fontes
Paráfrase de Catulle Mendès*
Ora, em Maqueros, perto da
Terra sagrada de Judá,
Num dia do mês de Schebat*,
O tetrarca da Galileia,
Filho de Herodes da Idumeia,
Reúne em magnífica assembleia,
Vitélio e vários dentre os seus
Homens e amigos galileus,
E os sacerdotes do seu Deus,
E honra o procônsul dos romanos,
Dando um banquete aos soberanos,
No dia egrégio dos seus anos.
A sala imensa do festim
É toda feita de algumim
Tauxiado de ouro e de marfim.
A mesa augusta ergue-se ao lado,
E assenta sobre um largo estrado,
Que é de sicômoro lavrado.
Turbando as chamas e os metais,
Sobem as fúmeas espirais
Dos incensários aromais.
Brilham os sifos dos convivas
E altas crisendetas* festivas
Cheias de figos e de olivas.
Veem-se amêndoas de Belém.
E as áureas ânforas contêm
Os vinhos róseos de Siquém.
Pela extensão da mesa nobre,
Por entre palmas, se descobre
A neve em cíatos de cobre.
Servem-se polmes de açafrol,
Romãs e tâmaras de Escol,
Bolos de melro e rouxinol.
Em cismas lúgubres absorto,
Antipas vê, de longe, o porto
Tranquilo e triste do mar Morto.
E o seu cismar enche-se de
Sombras horríficas, porque
A morte próxima prevê.
Contudo, às vezes conversando,
Disfarça as mágoas; porém, quando
Vai o banquete terminando,
O velário de um pavilhão
Se abre: Herodes no salão
Surge entre anêmonas, então.
E erguendo a pátera florida,
Diante da sala comovida,
Declama: “A César, longa vida!”
É nesse instante triunfal,
Exatamente no final
Do ágape esplêndido e fatal,
Que, do fundo das galerias,
Num incêndio de pedrarias,
Desponta a filha de Herodias.
E ao som de mandora e quinor,
Num flavescente resplendor
De gemas de Sirinagor,
Entre os aplausos do delírio,
Virgem e leve como um lírio,
Entra dançando ao modo assírio.
Fascinadora, Salomé
Levanta o véu, que desce até
À asa recurva do seu pé.
E em torcicolos coleantes,
E na volúpia das bacantes,
Tine as crotálias ressoantes.
Ri-se, e na dança tem o dom
De deslumbrar, variando com
A ondulação de cada som.
Gira em volteios colubrinos*,
Lentos, elásticos, felinos,
Ao retumbar dos tamborinos.
Em tentadora inebriez,
Mostra a morena calidez
Doirada e bíblica da tez.
Chega-se a Antipas, e recua…
Ascende aos poucos, e flutua,
Maravilhosa e seminua…
Avança e foge, e vem e vai,
Ondula, e ala-se, e recai
Em posição de quem atrai…
Seu corpo nimba-se envolvido
Por um translúcido tecido,
Que é como um fluido colorido.
No desvario que a seduz,
As mil imagens reproduz
Da flor, dos pássaros, da luz!
Arfam na graça dos coleios,
Nos redopios e meneios,
Os pomos pulcros dos seus seios…
Ante o seu mágico poder,
Diz-lhe o tetrarca sem conter
O entusiasmo do prazer:
– “Pede-me tudo o que quiseres!
Qual a província que preferes,
Flor luminosa entre as mulheres?”
– “Tu és tão bela que nenhum
Prêmio te paga! E só por um
Beijo, eu te dou Cafarnaum!”
E ela, infantil, em voz que freme,
Assim lhe diz: “Dá-me em estreme…”
Murmura um nome… E Herodes treme!
Pede que não, e exora… Mas
A sala ordena pertinaz:
– “Tu prometeste – e tu darás!”
Depois, num grande prato de ouro,
Entre as aclamações em coro,
Com os olhos úmidos de choro,
Nas mãos de um fâmulo idumeu,
Diante do povo galileu,
De Iaokanann* apareceu,
Bruta, a cabeça ensanguentada,
Que, pelo gume de uma espada,
Fora do tronco separada.
Da sua pálpebra, a fulgir
Como uma hidrófana de Ofir,
Vê-se uma lágrima cair…
Ante essa lágrima tristonha,
Herodes julga a voz medonha
Ainda escuta, como quem sonha…
Ouve dizer-lhe Iaokanann!
– “Tetrarca impuro, a vida é vã,
E a tua amante é tua irmã!”
Serena, a lágrima resvala,
Tremula e cai. E toda a sala,
Cheia de espanto e horror, se cala.
Mas Salomé, flor de Engadi,
Ao Precursor, num frenesi,
Diz: “Por que choras?” E sorri.
E ele responde: – “A causa desta
Última lágrima funesta,
É ter chegado tarde à festa…
“Pois me fizeste, a meu pesar,
Por tanto tempo demorar,
Que não te pude ver dançar…”
In: MARTINS FONTES, José. Verão. 4ª edição, comemorativa do centenário de nascimento do autor. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1983. p. 92-97.

Notas:
1- José Martins Fontes, poeta brasileiro (1884-1937), nasceu e faleceu na cidade de Santos, SP. Formou-se em medicina no Rio de Janeiro, foi médico sanitarista e esteve na Amazônia a serviço do governo brasileiro. Mais sobre Martins Fontes: https://pt.wikipedia.org/wiki/Martins_Fontes.
2- Este poema de Martins Fontes – conforme informado mais acima – é uma paráfrase ou recriação do poema “La gloire de Salomé ou Le madrigal de saint Jean” do francês Catulle Mendès (1841-1909), constante do livro Les Braises du Cendrier (1909). O poema original francês de Mendès tem 58 versos, agrupados em 19 tercetos e um verso solto, o último; este de Martins Fontes tem 135 versos, postos em 45 tercetos. O texto de Mendès pode ser lido aqui: http://www.mediterranees.net/mythes/salome/divers/mendes.html.
3- A ortografia foi atualizada para a que temos em vigor no momento, conforme o Acordo Ortográfico. Corrigi possíveis erros tipográficos da edição consultada, os quais possivelmente vinham já das edições anteriores de Verão. As notas seguintes tratam de alguns termos que requerem explicações mais detalhadas.
4- Schebat – Ou Shebat. É o 11º mês do calendário hebraico, tem 30 dias e inicia-se em fins de fevereiro.
5- Crisendeta – Não encontrei em dicionários. Do latim chrysendeta, -orum, designa uma espécie de prato ornado, cinzelado em ouro. Trata-se aqui, portanto, de uma travessa ou baixela luxuosa, de fino lavor. Conferir http://www.dicolatin.com/FR/LAK/0/CHRYSENDETA/index.htm.
6- Colubrinos – Consta no original como columbrinos (sic), possível erro de transcrição ou tipográfico.
7- IaokanannIocanã, outra forma do nome João. Mantive o original Iaokanann (sic). É originária do hebraico יוחנן (Yôḥānān), forma reduzida de יהוחנן (Yəhôḥānān). É possível que o autor tenha adotado este nome, ao invés de João, por motivos de métrica. No poema de Mendès, fonte deste, a forma usada é Jean, equivalente francês de João. A forma portuguesa e muitas outras presentes em línguas modernas vieram do latim Ioannes, por sua vez adaptado do grego neotestamentário Ιωάννης (Ioánnis), originário também do hebraico.
8- O episódio do festim de Herodes, dança de Salomé e decapitação de João Batista é narrado no Evangelho de Mateus, capítulo XIV, versículos 1 a 12, e no de Marcos, capítulo VI, versículos 14 a 29. É uma narrativa bastante conhecida no Ocidente, tendo servido de inspiração a muitas obras de arte.
Santarém, PA, 13/07/2016; atualizado em 11/03/2024.
Leia e curta também no Wordpress.

Nenhum comentário:

Postar um comentário