sexta-feira, 29 de julho de 2016

Acidente argentino

Uma jornalista da TV Globo News disse que o cineasta Héctor Babenco, recentemente falecido, era brasileiríssimo, e só “nasceu na Argentina por acidente”.
Quer dizer que nascer na Argentina é acidente?
Aguardo há tempos que os defensores do “politicamente correto” se manifestem contra o preconceito de nossos meios de comunicação contra a Argentina e seu povo. Se não se aceitam comentários ou gracejos desse tipo contra outros grupos, por que aceitá-los quando se referem aos argentinos?
E há ofensas até piores do que esta. Dois exemplos:
  • Em outra TV do tipo news, um jornalista e apresentador, ao referir-se a uma famosa chef argentina radicada no Brasil, e que seria entrevistada por ele, disse que “ela é argentina MAS é gente boa”. Ato falho?
  • Num programa reality show de atendimento médico de urgência, médicos conversam enquanto cuidam de um paciente; a conversa referia-se a algum tipo de procedimento médico: “Está brincando! Duvido que isso tenha sido inventado por um argentino! Já viu alguma coisa boa vir da Argentina?”
E tudo transmitido pela TV!
Esse tipo de preconceito é inculcado em nossa população o tempo todo – e não se trata apenas de rivalidade esportiva.
Dizem que é esta a diferença entre brasileiros e argentinos: enquanto dizemos que Deus é brasileiro, os portenhos TÊM CERTEZA de que Ele NÃO É argentino.
Está explicado, pois!
Santarém, PA, 29/7/2016.

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Complexo canino

Este não tem complexo nenhum: sabe exatamente o que quer!
A mídia brasileira e seus colaboradores continuam a ser as “delícias do gênero humano” que tão bem conhecemos!
19 de julho. TV Globo News. Assunto: bloqueio do aplicativo Whatsapp por uma juíza do Rio de Janeiro. Um “especialista em tecnologia” diz que a juíza agiu de modo “infantil e com complexo de vira-lata”. Por quê? Porque, segundo o “especialista”, ela reclamou de que recebeu, da empresa responsável, uma resposta em inglês. A meritíssima juíza tivera um chilique, um mimimi de quem não sabe inglês!
Ou seja, seguindo-se o raciocínio de nosso “especialista”, os gringos falam conosco em inglês e nós temos a obrigação de saber sua língua; quem reclama disso é um vira-lata.
Conclui-se então o Brasil é um grande canil (até rima!), pois creio que apenas 1% de nossa população sabe inglês de modo satisfatório para compreender falantes dessa língua e fazer-se compreender por eles; os demais são vira-latas, tomba-latas, rasga-sacos ou quaisquer outros espécimes caninos de raça não definida e falantes apenas dessa língua canina chamada português. (Eu, por exemplo, devo ser um vira-lata de porte considerável – não vou revelar aqui meus 115 kg bem mal distribuídos – ops!: assim como o notório coronel Ponciano de Azeredo Furtado, quase destronco toda e qualquer balança na qual subo!)
Não entremos no mérito da questão jurídica: não importa se o Estado pode ou não obrigar empresas de comunicação a fornecer dados de seus clientes, ainda que seja para fins de investigação policial ou judicial. O “especialista” errou feio em sua análise da conduta da juíza, pois é evidente que o conceito de complexo de vira-lata usado por ele está malandramente invertido.
Vejamos.
O complexo de vira-lata diz respeito a uma espécie de baixa autoestima, que levaria o brasileiro a sentir-se inferior a outros povos e a tentar emulá-los, imitá-los ou macaqueá-los para ser como eles – e ser aceito em seu clube. Daí a negação de tudo o que é nacional ou nativo, tido por inferior em comparação com o que vem de fora: tudo o que é nosso é inferior, por isso devemos deixá-lo de lado e assumir os modos estrangeiros. Nada podemos contra os gringos, e eles sempre sabem o que é melhor para nós.
No caso de algum revés – como a célebre derrota para o Uruguai na Copa do Mundo de 1950 – a causa seria esse complexo, pois, apesar das belas vitórias anteriores, em momentos decisivos os brasileiros já se considerariam derrotados por antecipação, conscientes de que jamais venceriam.
Eis portanto o complexo: somos reconhecidamente inferiores e não somos capazes de vencer. Ou, por outra: “A gente joga bola e não consegue ganhar”.
O menosprezo de nossa língua em favor do inglês ou qualquer outra é sintoma desse complexo; o mesmo com respeito a nossa história, nossa literatura, nossa comida – a brasilidade, enfim.
Não prego aqui um comportamento nacionalista ou xenófobo – longe disso!
Mas a atitude da juíza, ao reclamar de uma resposta institucional em inglês emitida pelo Facebook/Whatsapp, não tem nada de complexo de vira-lata, muito pelo contrário: ela exigiu tratamento respeitoso e adequado por aquela empresa estrangeira, que deve, no Brasil, utilizar em seu trato com as autoridades e clientes/consumidores a língua nacional e oficial, o português.
Sua atitude seria indício do complexo de vira-lata se ela tivesse silenciado diante da atitude grosseira (ou apenas automática) da empresa, tendo-a por normal: “Eles estão com a razão; se não sei a língua deles a culpa é minha”. Nada disso!
E o “especialista” considerou a reclamação dela um sintoma de vira-latismo.
Que sina a nossa!
Por décadas o complexo de vira-lata foi a justificativa de nosso atraso: éramos inferiores e nada conseguíamos de notável por causa disso, não tínhamos futuro, não éramos civilizados nem tínhamos direito a um lugar no concerto das nações. Nadávamos, nadávamos e morríamos na praia! Merecidamente. Um discurso de “inferioridade natural” (e de origem racial) mantinha contido, quieto, “pacificado” o nosso povo, sem esperança de um futuro melhor, pois não tínhamos direito a ele, não éramos capazes de atingi-lo.
E a fina flor de nossa brasilidade, por meio de seus “especialistas”, nos prestava o grande favor de mostrar nossa incapacidade e nos punha no devido lugar.
As coisas foram mudando. Aos poucos mostramos – inclusive a nós mesmos – que somos tão capazes quanto os demais povos. Não inferiores, tampouco superiores. Apenas iguais, apesar de nossas dificuldades. Também podemos contribuir para a civilização mundial. Fim do complexo!
Será?
Mas assim não pode, assim não dá, assim não é possível!
E a reação logo veio. O complexo de vira-lata se transformou, seu significado se alterou.
Agora, querer que uma instituição brasileira possa peitar qualquer empresa estrangeira é indício de complexo de vira-lata. Exigir tratamento de igual para igual é complexo de vira-lata. Pedir que os gringos, no Brasil, falem nossa língua é febril complexo de vira-lata. Pensar em resolver nossos problemas por nós mesmos é indicativo de complexo de vira-lata no mais alto grau!
Antes queríamos, mas não conseguíamos; agora conseguimos, mas não podemos.
Éramos um vira-lata magro, faminto, sarnento e de rabo entre as pernas, enxotado de cá para lá pelas ruas do mundo; agora que nos tornamos um cão de fila grande, robusto, decidido, nos puseram coleira, focinheira e correntes.
A inversão de sinal do complexo de vira-lata é mais um indicativo de que, no Brasil, as coisas mudam para que tudo continue como sempre foi.
Santarém, PA, 28/7/2016.

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Amor-perfeito [poema de Laurindo Rabelo]

Amor-perfeito (Viola tricolor L.) - Fonte: https://fiorebellafloresecestas.wordpress.com
AMOR-PERFEITO
Laurindo Rabelo (1826-1864)
Secou-se a rosa… era rosa;
Flor tão fraca e melindrosa,
Muito não pôde durar.
Exposta a tantos calores,
Embora fossem de amores,
Cedo devia secar.
Porém tu, amor-perfeito,
Tu, nascido, tu afeito
Aos incêndios que amor tem,
Tu que abrasas, tu que inflamas,
Tu que vegetas nas chamas,
Por que secaste também?!
Ah! bem sei. De acesas fráguas
As chamas são tuas águas,
O fogo é água de amor.
Como as rosas se murcharam,
Porque as águas lhes faltaram,
Sem fogo murchaste, flor.
É assim, que bem florente
Eras, quando o fogo ardente
De uns olhos que raios são,
Em breve, mas doce prazo
Te orvalhou naquele vaso
Que já foi meu coração.
Secaste, porque esse pranto
Que chorei, que choro há tanto,
De todo o fogo apagou.
Triste, sem fogo, sem frágua
Secaste, como sem água,
A triste rosa secou.
Que olhos foram aqueles!
Quando eu mais fiava deles
Meu presente e meu porvir,
Faziam cruéis ensaios
Para matar-me. Eram raios,
Tinham por fim destruir.
Destruíram-me: contudo
Perdoo o pesar agudo,
Perdoo a pungente dor
Que sofri nos meus tormentos,
Pelos felizes momentos
Que me deram nesta flor.
Ai! querido amor-perfeito!
Como vivi satisfeito,
Quando te vi florescer!
Ai! não houve criatura
No prazer e na ventura
Que me pudesse exceder.
Ai! seca flor, de bom grado,
Se tanto pedisse o fado,
Quisera sacrificar
Liberdade e pensamento,
Sangue, vida movimento,
Luz, olfato, sons e ar
Só para ver-te florente,
Como quando o fogo ardente,
De uns olhos que raios são,
Em breve, mas doce prazo,
Te orvalhou naquele vaso
Que já foi meu coração.
In: RABELO, Laurindo José da Silva. Obras Completas: Poesia, Prosa e Gramática. Organização, introdução e notas de Osvaldo Melo Braga. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1946. (Livros do Brasil, 8). p. 289-291. Ortografia atualizada.

O autor:
Laurindo José da Silva Rabelo, médico, militar e poeta brasileiro, nasceu no Rio de Janeiro em 8 de julho de 1826 e faleceu na mesma cidade em 28 de setembro de 1864. Foi seminarista, mas não chegou a ordenar-se. Formou-se em medicina e ingressou no Corpo de Saúde do Exército, servindo no Rio Grande do Sul; foi também professor da Academia Militar. Mais sobre Laurindo Rabelo: https://pt.wikipedia.org/wiki/Laurindo_Rabelo.
Santarém, PA, 18/7/2016.

O Escudo de Minerva

A deusa Atena ou Minerva. Fonte: http://www.turismogrecia.info.
O ESCUDO DE MINERVA
Humberto de Campos (1886-1934)
Mão nervosa e febril, Fídias sonha e trabalha.
A alma paira, genial, nas alturas serenas,
E o cinzel, a ranger, morde a matéria, e talha
A figura imortal da Senhora de Atenas.
Trabalha. A fronte, o braço, a alta cabeça, o escudo,
E a petrina, a guardar dos seios o tesouro,
Surgem, formando a deusa, hirta e solene; e tudo
É talhado em marfim, cortado em pranchas de ouro.
E a estátua, um dia, enfim, no alto templo descansa;
O peito colossal quase ofega e respira.
E, apinhada a seus pés, sob a base da lança,
A helênia capital, sábia e inteira, delira.
Todo o que olha, em respeito, aqueles trinta e nove
Pés de altura de Atena, evoca os tempos, quando,
Assim bela, ao surgir da cabeça de Jove,
Pela glória da Hélade andara batalhando.
O gesto, a calma, o olhar, a firmeza do porte,
A face do broquel e a lança em que se apoia,
Dizem bem quem levou o estrago, a angústia, a morte,
Pelo braço do grego, às falanges de Troia.
A audácia de Patroclo e a doida valentia
Da heroica multidão que os impérios invade,
Vieram da proteção e da Sabedoria
Da Senhora Imortal da Grécia e da Cidade.
E ei-la, ali, bela e só, como vinda doutra era
Ao báratro sem fim das misérias terrenas,
Para ver, e abençoar com a presença severa,
As conquistas da Grécia e a grandeza de Atenas.
O lábio que inspirara o discurso de Ulisses
E da nau de Jasão dera o modelo novo,
Era ali, belo e moço, austero e sem meiguices,
Mas, na sua mudez, a beijar seu povo.
De repente, porém, olhando o escudo sobre
O alvo pulso de Atena, alguém, afeito a insídias,
Espantado, e a gritar, à multidão descobre,
Na face de broquel, a figura de Fídias.
O soberbo escultor, na alta febre que o inspira,
No seu orgulho hostil, de artista intemerato,
Mão tremente, olhar louco, em delírio, esculpira,
No divino broquel, seu humano retrato.
***
Assim, ó sonhador, que te acolhes na dobra
Do amplo manto de Apolo, e erras, em sonhos, a esmo,
Deixa sempre, insolente, impresso na tua obra,
Um traço da tu’alma e um pouco de ti mesmo.
Esquece, ao trabalhar, as humanas perfídias,
Mostra o teu coração, esculpe a tua ideia:
Como, outrora, imortal, o retrato de Fídias
Gravado no broquel de Palas Ateneia!
In: CAMPOS, Humberto de. Poesias Completas. Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc., 1951. (Obras Completas, 1). p. 215-217. Ortografia atualizada.

O autor:
Humberto de Campos Veras nasceu em Miritiba (atual Humberto de Campos), Maranhão, em 5/10/1886 e faleceu no Rio de Janeiro em 5/12/1934. Foi membro da Academia Brasileira de Letras. Mais sobre o autor: https://pt.wikipedia.org/wiki/Humberto_de_Campos.

Santarém, PA, 16/7/2016.
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quinta-feira, 14 de julho de 2016

Salomé [poema de Martins Fontes]

Benozzo Gozzoli, “A dança de Salomé e a decapitação de São João Batista” (1461-62).
Fonte:
https://figurasdaficcao.wordpress.com.
SALOMÉ
Martins Fontes
Paráfrase de Catulle Mendès*
Ora, em Maqueros, perto da
Terra sagrada de Judá,
Num dia do mês de Schebat*,
O tetrarca da Galileia,
Filho de Herodes da Idumeia,
Reúne em magnífica assembleia,
Vitélio e vários dentre os seus
Homens e amigos galileus,
E os sacerdotes do seu Deus,
E honra o procônsul dos romanos,
Dando um banquete aos soberanos,
No dia egrégio dos seus anos.
A sala imensa do festim
É toda feita de algumim
Tauxiado de ouro e de marfim.
A mesa augusta ergue-se ao lado,
E assenta sobre um largo estrado,
Que é de sicômoro lavrado.
Turbando as chamas e os metais,
Sobem as fúmeas espirais
Dos incensários aromais.
Brilham os sifos dos convivas
E altas crisendetas* festivas
Cheias de figos e de olivas.
Veem-se amêndoas de Belém.
E as áureas ânforas contêm
Os vinhos róseos de Siquém.
Pela extensão da mesa nobre,
Por entre palmas, se descobre
A neve em cíatos de cobre.
Servem-se polmes de açafrol,
Romãs e tâmaras de Escol,
Bolos de melro e rouxinol.
Em cismas lúgubres absorto,
Antipas vê, de longe, o porto
Tranquilo e triste do mar Morto.
E o seu cismar enche-se de
Sombras horríficas, porque
A morte próxima prevê.
Contudo, às vezes conversando,
Disfarça as mágoas; porém, quando
Vai o banquete terminando,
O velário de um pavilhão
Se abre: Herodes no salão
Surge entre anêmonas, então.
E erguendo a pátera florida,
Diante da sala comovida,
Declama: “A César, longa vida!”
É nesse instante triunfal,
Exatamente no final
Do ágape esplêndido e fatal,
Que, do fundo das galerias,
Num incêndio de pedrarias,
Desponta a filha de Herodias.
E ao som de mandora e quinor,
Num flavescente resplendor
De gemas de Sirinagor,
Entre os aplausos do delírio,
Virgem e leve como um lírio,
Entra dançando ao modo assírio.
Fascinadora, Salomé
Levanta o véu, que desce até
À asa recurva do seu pé.
E em torcicolos coleantes,
E na volúpia das bacantes,
Tine as crotálias ressoantes.
Ri-se, e na dança tem o dom
De deslumbrar, variando com
A ondulação de cada som.
Gira em volteios colubrinos*,
Lentos, elásticos, felinos,
Ao retumbar dos tamborinos.
Em tentadora inebriez,
Mostra a morena calidez
Doirada e bíblica da tez.
Chega-se a Antipas, e recua…
Ascende aos poucos, e flutua,
Maravilhosa e seminua…
Avança e foge, e vem e vai,
Ondula, e ala-se, e recai
Em posição de quem atrai…
Seu corpo nimba-se envolvido
Por um translúcido tecido,
Que é como um fluido colorido.
No desvario que a seduz,
As mil imagens reproduz
Da flor, dos pássaros, da luz!
Arfam na graça dos coleios,
Nos redopios e meneios,
Os pomos pulcros dos seus seios…
Ante o seu mágico poder,
Diz-lhe o tetrarca sem conter
O entusiasmo do prazer:
– “Pede-me tudo o que quiseres!
Qual a província que preferes,
Flor luminosa entre as mulheres?”
– “Tu és tão bela que nenhum
Prêmio te paga! E só por um
Beijo, eu te dou Cafarnaum!”
E ela, infantil, em voz que freme,
Assim lhe diz: “Dá-me em estreme…”
Murmura um nome… E Herodes treme!
Pede que não, e exora… Mas
A sala ordena pertinaz:
– “Tu prometeste – e tu darás!”
Depois, num grande prato de ouro,
Entre as aclamações em coro,
Com os olhos úmidos de choro,
Nas mãos de um fâmulo idumeu,
Diante do povo galileu,
De Iaokanann* apareceu,
Bruta, a cabeça ensanguentada,
Que, pelo gume de uma espada,
Fora do tronco separada.
Da sua pálpebra, a fulgir
Como uma hidrófana de Ofir,
Vê-se uma lágrima cair…
Ante essa lágrima tristonha,
Herodes julga a voz medonha
Ainda escuta, como quem sonha…
Ouve dizer-lhe Iaokanann!
– “Tetrarca impuro, a vida é vã,
E a tua amante é tua irmã!”
Serena, a lágrima resvala,
Tremula e cai. E toda a sala,
Cheia de espanto e horror, se cala.
Mas Salomé, flor de Engadi,
Ao Precursor, num frenesi,
Diz: “Por que choras?” E sorri.
E ele responde: – “A causa desta
Última lágrima funesta,
É ter chegado tarde à festa…
“Pois me fizeste, a meu pesar,
Por tanto tempo demorar,
Que não te pude ver dançar…”
In: MARTINS FONTES, José. Verão. 4ª edição, comemorativa do centenário de nascimento do autor. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1983. p. 92-97.

Notas:
1- José Martins Fontes, poeta brasileiro (1884-1937), nasceu e faleceu na cidade de Santos, SP. Formou-se em medicina no Rio de Janeiro, foi médico sanitarista e esteve na Amazônia a serviço do governo brasileiro. Mais sobre Martins Fontes: https://pt.wikipedia.org/wiki/Martins_Fontes.
2- Este poema de Martins Fontes – conforme informado mais acima – é uma paráfrase ou recriação do poema “La gloire de Salomé ou Le madrigal de saint Jean” do francês Catulle Mendès (1841-1909), constante do livro Les Braises du Cendrier (1909). O poema original francês de Mendès tem 58 versos, agrupados em 19 tercetos e um verso solto, o último; este de Martins Fontes tem 135 versos, postos em 45 tercetos. O texto de Mendès pode ser lido aqui: http://www.mediterranees.net/mythes/salome/divers/mendes.html.
3- A ortografia foi atualizada para a que temos em vigor no momento, conforme o Acordo Ortográfico. Corrigi possíveis erros tipográficos da edição consultada, os quais possivelmente vinham já das edições anteriores de Verão. As notas seguintes tratam de alguns termos que requerem explicações mais detalhadas.
4- Schebat – Ou Shebat. É o 11º mês do calendário hebraico, tem 30 dias e inicia-se em fins de fevereiro.
5- Crisendeta – Não encontrei em dicionários. Do latim chrysendeta, -orum, designa uma espécie de prato ornado, cinzelado em ouro. Trata-se aqui, portanto, de uma travessa ou baixela luxuosa, de fino lavor. Conferir http://www.dicolatin.com/FR/LAK/0/CHRYSENDETA/index.htm.
6- Colubrinos – Consta no original como columbrinos (sic), possível erro de transcrição ou tipográfico.
7- IaokanannIocanã, outra forma do nome João. Mantive o original Iaokanann (sic). É originária do hebraico יוחנן (Yôḥānān), forma reduzida de יהוחנן (Yəhôḥānān). É possível que o autor tenha adotado este nome, ao invés de João, por motivos de métrica. No poema de Mendès, fonte deste, a forma usada é Jean, equivalente francês de João. A forma portuguesa e muitas outras presentes em línguas modernas vieram do latim Ioannes, por sua vez adaptado do grego neotestamentário Ιωάννης (Ioánnis), originário também do hebraico.
8- O episódio do festim de Herodes, dança de Salomé e decapitação de João Batista é narrado no Evangelho de Mateus, capítulo XIV, versículos 1 a 12, e no de Marcos, capítulo VI, versículos 14 a 29. É uma narrativa bastante conhecida no Ocidente, tendo servido de inspiração a muitas obras de arte.
Santarém, PA, 13/07/2016; atualizado em 11/03/2024.
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quinta-feira, 7 de julho de 2016

Getsêmani

O Jardim das Oliveiras ou Getsêmani. Fonte: Wikipedia.
Num programa de rádio, ouvi discussão sobre a pronúncia do nome Getsêmani, localidade de Jerusalém também conhecida como Jardim das Oliveiras. Segundo o Novo Testamento, Jesus dirigiu-se a esse lugar para orar, antes de ser preso. O episódio é conhecido pelos cristãos (principalmente os católicos) como Agonia no Getsêmani ou, simplesmente, Agonia.
Mas a dúvida dos locutores do programa de rádio era: este GE é pronunciado como GUÊ ou JÊ?
Discussão tola, e seu motivo foi mesmo o nome de um cemitério famoso da cidade de São Paulo cujo nome é grafado Gethsêmani, com um H depois do T.
O fato é que em português o G antes de E e I é sempre lido como J e a grafia desse nome não tem H (em Portugal se escreve Getsémani, com É, pois lá a pronúncia da vogal tônica é aberta).
A palavra Getsêmani difundiu-se a partir do nome grego Γεθσημανή, usado nos evangelhos de Mateus e Marcos (Novo Testamento) e originário do nome aramaico גת שמנא, transliterado em caracteres latinos Gat Shmānê; em hebraico é גת שמנים, Gat Shmanim. Foi da forma latina Gethsemani que provieram a forma portuguesa e as demais em outras línguas.
Possivelmente a direção do cemitério adotou tal grafia híbrida (com H e acento gráfico) para diferenciar o nome da instituição do nome próprio do local citado na Bíblia.
Vejamos o texto bíblico na clássica tradução de João Ferreira de Almeida (Versão Corrigida e Revisada Fiel):
“Então chegou Jesus com eles a um lugar chamado Getsêmani, e disse a seus discípulos: Assentai-vos aqui, enquanto vou além orar.” – Mateus 26:36.
“E foram a um lugar chamado Getsêmani, e disse aos seus discípulos: Assentai-vos aqui, enquanto eu oro.” – Marcos 14:32.
Ao passar de uma língua a outra(s), as palavras sempre se adaptam à fonologia e pronúncia da língua receptora; a pronúncia de uma palavra na língua de origem não implica que no português deva ser também daquele jeito. Seja como for, o nome Getsêmani, mesmo sendo nome próprio, é tradicional, antigo e está incorporado ao patrimônio lexical do português e da cultura lusófona, pelo que se grafa e se pronuncia de acordo com as regras de escrita e fonologia de nossa língua: a pronúncia é JETSÊMANI ou JETSÉMANI, nunca GUETSÊMANI ou GUETSÉMANI.
É triste saber que parte de nossa população passa pela escola e sai dela sem conhecer as mais comezinhas normas de escrita e pronúncia da própria língua.
Creio que pelo menos os leitores costumeiros da Bíblia não têm a dúvida aqui citada – ainda que a leitura da Bíblia ou qualquer outro livro religioso não seja pré-requisito ou garantia de domínio da língua.
P.S.: Aos “primitivistas” e outros que rejeitam a pronúncia tradicional portuguesa de Getsêmani, sob a alegação de que não corresponde ao original, sugiro que usem o nome do local, então, na forma original em aramaico – mas está claro que muitos pensam ser a forma “original” aquela usada em inglês…
Santarém, PA, 7/7/2016.

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