sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Nossa Única Posse [poema de Julius Balbin]


NOSSA ÚNICA POSSE (Nia Sola Posedaĵo)
Julius Balbin (1917-2006)
Traduzido do esperanto por Júlio César Pedrosa.
No gueto
onde ainda
era possível
fazer amor
eu a encontrei.
Ambos tínhamos dezesseis anos
e nos envergonhávamos
De nossos corpos nus.
Tomando um ao outro pelas mãos
Abraçávamo-nos timidamente.

No campo de concentração
fomos separados
pelo arame farpado
mas nosso ardor
ignorava barreiras.

Os holofotes
das torres de guarda
espionavam a escuridão
enquanto eu rastejava
na direção das barracas das mulheres
por sob os arames
e me contorcia
entre vida e morte.

Eu alcançava a porta,
abria-a
e furtivamente deslizava
até onde o sussurro de minha amada
me guiava, à cama de cima,
Onde nua ela esperava.

O pesadelo da realidade
era engolido
pelo abismo
de nosso abraço
e nós íamos
ao topo
de tudo o que é humano
penetrando um no outro.

As mulheres à nossa volta
dormiam suspirando ou roncando
enquanto nós estávamos além de tudo,
contendo nossas paixões
ou silenciando nossos gemidos.
Amávamos
na febre que nossos corpos
nunca conheceram.

Não possuíamos nada
além de um ao outro.
Dividindo esses momentos
nós nos movíamos no ritmo
da lua e das estrelas
que brilhavam acima de nós
eternamente.

BALBIN, Julius. Nia Sola Posedaĵo. In: AULD, William. (Org.). Esperanta Antologio: Poemoj. 1887-1981. Rotterdam: UEA, 1984, pp. 760-762.

Notas:
1- Julius Balbin (1917-2006) nasceu em Cracóvia, Polônia, no seio de uma família judia. Foi preso pelos alemães e passou por vários campos de concentração. Após o fim da II Guerra Mundial estudou em Viena, Áustria, e emigrou em 1951 para os Estados Unidos da América, onde por muitos anos foi professor universitário, retornando à Europa em 2005. Faleceu em Aye, Bélgica. Publicou vários livros de poemas em esperanto.
2- Sobre a tradução: No poema acima, o único sinal de pontuação usado pelo autor é o ponto (.). Acrescentei algumas vírgulas onde vi que elas eram necessárias, devido à estrutura de nossa língua e para não fugir ao sentido do texto original, deixando o restante do texto com a pontuação (ou a falta dela) original, o que, a meu ver, contribui para melhor apreender o clima do poema; creio que a falta de vírgulas é elemento significativo deste poema. O leitor compreenderá por si mesmo e dirá se tenho ou não razão.
3- Publico este texto traduzido no âmbito das celebrações ocorridas por ocasião dos 70 anos da libertação, por tropas soviéticas, do campo de concentração de Auschwitz (em polonês Oświęcim), Polônia, ocorrida em 27 de janeiro de 1945.
4- O texto original pode ser lido na página do atalho a seguir, acompanhado de traduções de J. E. Nagy em húngaro e romeno: http://www.ipernity.com/blog/199659/338252.
5- Mais sobre Julius Balbin:
Em inglês: "Strangled Cries: A profile of poet Julius Balbin"  Alexander Kharkovsky;
Em esperanto: "Julius Balbin" - Wikipedia.
6- Um artigo de Julius Balbin (em inglês): "The Secret Malady of Esperanto Poetry" (1973).

Santarém, Pará, 31/1/2015. Editado em 17/3/2015.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Rastro de corno

“IAGO – Eu, zombando de vós? Não, pelo céu. Como homem, suportai vosso destino.
OTELO – O homem de chifres é animal, é monstro.”
(W. Shakespeare, Otelo, tradução de Carlos Alberto Nunes)

Certa vez, andando pela Av. São Sebastião, em Santarém, PA, ouvi uma locução que até então eu desconhecia. Um ônibus com defeito estava parado no meio da pista, nas proximidades de um ponto de fiscalização; um fiscal atravessou a rua e gritou para o motorista do ônibus quebrado:
Pisaste em rastro de corno?
Pois é, bem na hora de voltar para casa...
Parece tratar-se de frase feita. Eu não a conhecia; talvez seja típica do Pará, ou apenas de Santarém. É mais uma criação léxico-sintática de nossa gente. A língua é uma e a mesma, mas o uso e a criatividade de nosso povo variam muuuuito neste Brasilzão quase sem fim!
É isto... Tomem cuidado, pois parece que, segunda a sabedoria popular, dá azar topar por aí com um – ou com seu rastro!

Rhyton, ríton, arte minoica, século XVI a.C. Museu Arqueológico de Heráclion, Creta, Grécia.

Brigando com onças

Panthera onca (Wikipedia)
Diálogo flagrado numa parada de ônibus:
– Rapaz, presenciei uma coisa incrível ontem...
– Verdade? O que viste?
– Três onças devorando uma única pessoa. Em pleno centro da cidade. Até agora estou impressionado.
– ?!
– Explico-me. A pessoa vestia uma blusa com estampa de oncinha. A bolsa também tinha estampa de oncinha. Desci os olhos até o sapato: estampa de oncinha! Era muita onça para um ser humano só. Resultado: onça 3 X 1 Homo sapiens. Verdadeiro massacre!
– De fato, coisa terrível! Com onça é assim: a gente deve enfrentar sempre uma só por vez...

Surfe e Cia.

Um brasileiro venceu o campeonato mundial de surfe, título inédito para o Brasil.
Uns vão dizer que esse título vale muito; outros dirão que não é tão importante assim.
O importante mesmo é lembrar que a palavra surfe se grafa com E no final, como muitas palavras inglesas adaptadas ao português: clube, turfe, esporte, bife; além disso, vários esportes têm seus nomes ingleses adaptados ao português: voleibol, basquetebol, beisebol, futebol, handebol, rúgbi etc.
Quanto à pronúncia, não há segredos; estas palavras, ainda que sejam de origem estrangeira e recente, pronunciam-se como as demais palavras portuguesas de estrutura semelhante.

Bem-vindos a Santarém e Alter do Chão!


Pichação em muro do antigo Estádio Municipal, Av. São Sebastião, Santarém, PA:
Srs. turistas, seu dinheiro traz o progresso, mas a sujeira deixada por vocês tira a beleza de nosso paraíso...! Alter do Chão!
Que mais se pode dizer? Bem-vindos a Santarém!
(Fotografado em 31/12/2014.)

domingo, 25 de janeiro de 2015

Dr. Funk explica... o recalque!



Enganam-se os que pensam que o funk e seus formadores de opinião nada têm com que contribuir para a cultura contemporânea.
Au contraire! A reintrodução, na cultura popular e de massa, dos conceitos de recalque, recalcamento, recalcado(a) etc. só merece elogios – mereceria também panegíricos, não estivesse tão fora de moda este estilo de composição clássico e "elitista". Fora de moda e distante do estilo leve, descontraído, moderno do alegre funk...
Popularizar o conceito de recalque, antes restrito ao domínio da psicanálise e psicologia, é uma das maiores contribuições da cultura brasileira à discussão sobre os problemas de comportamento e de inserção social de muitos indivíduos – ou para, simplesmente, explicar o porquê de tantas pessoas ranzinzas e irritantes que vivem a reclamar do que acham que está errado e teimam em dar sua opinião, mesmo sendo ela o contrário do que pensa a maioria das pessoas. Sim, pois não há nada errado, tudo está na mais perfeita ordem.
Afinal, já dizia há tempos o doutor Pangloss, em sua cândida sabedoria: “Vivemos no melhor dos mundos”. É isso! Não há motivo ou razão para queixar-se de nada. E por que razão, em assim sendo, tanta gente reclama disto ou daquilo, se a vida é tão boa? A explicação é uma só: o recalque!
A Teoria do Recalque é, portanto, a explicação mais satisfatória para tudo de ruim – ou nem tanto assim – que ocorre em nossa sociedade.
Se não, vejamos.
Por que reclamar dos motoristas que passam com seus carros tocando música (?) em altíssimo volume? Só podem ser uns recalcados os que reclamam disto, pois gostariam, na verdade, de estar lá também, curtindo o som “maneiro”.
Por que comentar negativamente a saia curta daquela mulher? Recalque, pois quem critica gostaria de ter pernas como aquelas, que só com a saia curtinha se podem mostrar.
Por que clamar contra a corrupção, se não por recalque? Gostaríamos de estar no grupo que participou daquela negociata, não é mesmo? Os apresentadores de programa policiais ou do "mundo cão" são recalcados, pois reclamam dos crimes cometidos pelos outros, quando eles mesmos também gostariam de sair cometendo uns crimezinhos por aí.
Por que duvidar da capacidade de discernimento dos eleitores do outro candidato? Só pode ser por causa do maldito recalque, já que nosso candidato não foi eleito.
Por que reclamar dos bugs do Windows, se não pelo fato de que, na verdade, somos uns recalcados e gostaríamos de ter um Macintosh?
A Miss Brasil não foi eleita Miss Universo? Retaliação motivada pelo recalque, é claro, pois nenhuma gringa tem a ginga, a classe, a beleza que as brasileiras têm.
Eles querem separar sua região para criar uma província independente? Recalcados, obviamente. Nós somos contra? Somos recalcados também  mas não espalhe! A cerveja deles espuma mais do que a nossa? Recalque espumoso!
E, por fim, por que reclamar dos pobres índios, que não aceitam a construção de hidrelétricas, rodovias, ferrovias, fábricas e outras coisinhas boas da civilização nas terras federais que ocupam? A resposta é o recalque: gostaríamos de ser como eles, andando nus pela mata, caçando, pescando, colhendo, banhando-se em riachos de água pura e cristalina, integrados à natureza e à Mãe Terra-Gaia e sem preocupação com falta de água ou energia, engarrafamentos de trânsito, poluição, contas para pagar, IR, IPI, IPVA, IPTU, ICMS, ISS, INSS, iOS, CPMF, Cide, Cid, Sabesp, Celpa, Cosanpa, OVNI, USA, URSS, PT, PSDB, PMDB...
Por isso, não seja recalcado(a), não se queixe de nada, pois não há nada de que se queixar. E não expresse sua opinião, pois ninguém quer saber dela.
Lembre-se: tudo o que você disser ou fizer, em relação a qualquer coisa, poderá ser usado como recalque contra você mesmo!
Sim, de fato o funk deu uma contribuição de suma importância para a cultura contemporânea brasileira.
P. S.: É claro que eu também sou um recalcado, caso contrário não teria escrito isto.

Este texto foi produzido e publicado por meio de softwares livres: sistema operacional Lubuntu 14.04; processador de texto LibreOffice 4.3.5.2; navegador de Internet Chrome/Linux.
Conheça, prestigie, divulgue o software livre.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

A faraona Hatchepsut

FÈVRE, Francis. Faraona de Tebas: Hatchepsut, Filha do Sol. Tradução de Gilda Stuart. São Paulo: Mercuryo, 1991.
[La Pharaonne de Thèbes – Hatchepsout, Fille du Soleil. Presses de la Renaissance, 1986.]

Não é um romance, tampouco uma obra estritamente acadêmica sobre o assunto; está mais para biografia, mas creio que a definição mais adequada é a de “documentário”, bem ao estilo do que ficou comum nos dias atuais em programas de TV sobre história: com base no conhecimento alcançado sobre determinada época, local e povo, traça-se uma visão panorâmica (às vezes aprofundada em certos aspectos) da época ou personagem estudada, tentando-se reconstituir, inclusive com dramatização, fatos históricos e preencher lacunas.

É o que faz nesta obra o historiador francês Francis Fèvre, autor de outros livros, incluindo-se dois romances sobre o Egito antigo. A partir do que se sabia, em meados da década de 1980, sobre a rainha-faraó (ou “faraona”) Hatchepsut, ele reconstitui a época, a cultura, as festas religiosas, a vida na corte, as intrigas palacianas e arrisca lançar hipóteses sobre a vida ainda não bem conhecida dessa soberana da XVIII dinastia egípcia.

Algumas digressões do autor servem para situar o Egito no contexto do Oriente Médio daquela época; outras descrevem rituais religiosos, o embalsamamento e sepultamento dos monarcas; o trabalho dos camponeses e dos operários das obras do Estado; o ritmo das cheias e vazantes do Nilo, fecundando a terra negra que dava nome ao país de Kemit; ou ainda traçam analogias com outras civilizações milenares, como a chinesa, além de recuperar para os dias atuais a importância de Hatchepsut para o Egito antigo.

A cronologia possivelmente mudou com as descobertas mais recentes (algo comum quando se trata de fatos ocorridos há tanto tempo e ainda muito nebulosos), mas atenho-me à do texto que comento e à grafia dos nomes egípcios citados pelo autor – baseados na ortografia francesa, o que foi em parte conservado na tradução em português (a forma mais comum atualmente é Hatshepsut).

Hatchepsut teria nascido por volta de 1535 a.C. e morrido com cerca de 50 anos de idade, possivelmente em 1484 a.C., após reinar por 20 anos no lugar de seu enteado Tutmósis III (ou Tutmós, Tutmés). Como Tutmósis era muito pequeno, Hatchepsut assumiu o trono após a morte do meio-irmão e marido, Tutmósis II, fazendo-se representar como homem em todas as situações. Não se tratava, portanto, de uma mulher ocupando o trono do Egito, como ocorreu algumas vezes durante a menoridade do herdeiro, mas de um faraó que era mulher, com todos os títulos, dignidades e indumentária do cargo (inclusive a barba falsa). Após sua morte, assume definitivamente o trono seu enteado, Tutmósis III, filho de Tutmósis II com uma concubina. Tutmósis III reinou por cerca de 35 anos e foi o faraó mais vitorioso do Egito, e com ele o país alcançou a extensão máxima de sua fronteiras, perdidas ou conservadas a duras penas, quando possível, por seus sucessores.

Apesar de que não se trata de um romance, o autor vale-se da técnica do discurso indireto livre para entrar nas mentes das personagens históricas, e os pensamentos dele misturam-se com os das personagens que reconstitui. Às vezes decorrem disso certos anacronismos, ao que parece – intencionais ou fruto do mergulho do autor na “mente” reconstituída de suas personagens? Fèvre reconstitui as personagens históricas e entra em suas mentes, tentando saber o que pensavam, seus anseios e frustrações. Descreve e/ou sugere a formação de Hatchepsut e seu casamento com o meio-irmão; a altivez e a consciência de ter sido talhada para o exercício do poder; o desgosto de ter nascido mulher num contexto de domínio masculino; a possível frustração de ver, pela terceira vez, um bastardo no trono do Egito (o autor levanta a hipótese de que Tutmósis I era filho bastardo de Amenófis I, que o teria casado com a filha legítima para conservar o sangue divino dos faraós – o casamento entre irmãos era fato comum nas casas reais egípcias; a esposa de Tutmósis III era sua meia-irmã, filha de Hatchepsut). Quanto a Tutmósis III, seu fortalecimento como comandante militar, enquanto espera o momento de reinar; o ódio àquela mulher que não lhe permite ocupar o trono que lhe é de direito; o alívio e satisfação com sua morte; a posterior decisão de apagá-la da história.

O autor tenta também responder a algumas questões: Teria Hatchepsut tentado iniciar um matriarcado no Egito, instituindo a possibilidade de uma mulher ocupar o trono após ela (sua filha Neferurê)? Se tentou isso, não o conseguiu. Teria havido uma relação amorosa entre Hatchepsut e Senenmut, seu vizir e arquiteto, construtor do maravilhoso templo de Deir-el-Bahari? Se não, por que Senenmut se fez representar no templo de sua rainha? Como ela teria conseguido reinar como faraó por tanto tempo (cerca de 20 anos ou um pouco mais)?

Fèvre defende que o reinado de Hatchepsut foi um período de estabilidade, de fortalecimento interno, de apego às tradições e à religião, mais voltado à diplomacia e ao comércio do que à armas; depois dela o Egito se abre para o mundo e se torna potência militar sob Tutmósis III, o Grande.

Após sua morte, Hatchepsut começa a ser apagada da história. Seus sucessores destroem suas estátuas, apagam seu nome e imagens dos templos que ela construíra, riscam seu nome dos registros; mas nem tudo conseguiram destruir, e o que restou ajuda a reconstituir, pelo menos em parte, sua vida e importância para a história egípcia.

O texto apresenta alguns erros tipográficos, o que não atrapalha a leitura. Destaco o fato de aparecer em todo o texto a forma amessida (nome da XVIII dinastia, fundada por Ahmósis I, bisavô de Hatchepsut); a forma correta em português é améssida, análoga a raméssida (designativo da XIX dinastia, fundada por Ramsés I).

Apesar de publicado originalmente há quase 30 anos, é livro ainda atual e que se lê com grande proveito e prazer.

Santarém, PA, 21/1/2015. Editado em 28/2/2015.