sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Não choramos por ti, Argentina!

Ainda que nem sempre reconheçam isso, os brasileiros vivem olhando por cima da cerca para ver o que se passa em seu principal vizinho, a República Argentina. A reação brasileira típica ao que se passa por lá é geralmente a empáfia, às vezes o ódio, raramente a inveja.

A vitória de Mauricio Macri nas eleições presidenciais argentinas deste ano deve ter provocado todos esses sentimentos nos brasileiros, atualmente mesmerizados pela política. Muitos devem, com certeza, ter ficado com inveja dos argentinos, que elegeram um candidato de oposição que pôs fim a 12 anos de governo peronista-kirchnerista. Devem estar perguntando-se: “Que fizemos de errado? Como os argentinos conseguiram isso?” Talvez aprendam com o candidato derrotado, Daniel Scioli, a reconhecer a derrota com altivez e ostentar postura mais republicana.

O candidato eleito Macri promete dar uma guinada na política e na economia da Argentina: pretende, por exemplo, cobrar a aplicação da “cláusula democrática” em relação à Venezuela, devido às denúncias de desrespeito aos direitos humanos, o que pode suspendê-la ou até excluí-la do Mercosul; talvez isso não ocorra (pois depende dos votos de todos os membros do bloco), mas provocará, com certeza, fissuras nas relações da Argentina com os demais parceiros, principalmente o Brasil.

Macri quer também promover reformas na economia, o que pode aproximar o país dos Estados Unidos, recebendo apoio dos investidores internacionais: os portenhos parecem ter em mira o recém-criado Tratado do Pacífico. Aproximando-se dos EUA, a Argentina deixaria de fazer parte do chamado Eixo Bolivariano (!?); de quebra, conquistaria um maior protagonismo na região, talvez arrastando outros vizinhos consigo. É o que talvez preocupe muita gente no Brasil.

Mas não nos incomodemos com isso. O Brasil prepara-se para receber a Olimpíada de 2016 na cidade do Rio de Janeiro. Apesar de falido, o estado do RJ gasta o que não tem em obras de infraestrutura; a prefeitura da cidade não faz diferente.

A propaganda oficial do evento regozija-se de que conseguimos trazer os Jogos Olímpicos para a América do Sul “antes dos argentinos”...

É isso. Conseguimos sediar os jogos antes da Argentina. De que mais precisamos?

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Nacionalité... française?

Num programa de TV, um dos comentaristas convidados declina a pergunta que já se tornou chavão nas últimas semanas após os atentados de 13 de novembro em Paris: "Como é possível que jovens franceses, jovens nascidos e criados na França cometam esses atentados contra a própria França?" A pergunta vale também para os belgas envolvidos e é repetida à exaustão nos meios de imprensa.

Talvez a pergunta esteja sendo mal formulada; ou talvez nem seja essa a pergunta a ser feita.

As pessoas nascidas em território da França têm nacionalidade francesa, não importando de onde tenham vindo seus pais; o processo é semelhante no Brasil e na própria Bélgica, além de muitos outros países. Não há dúvida, portanto, de que os terroristas em questão eram franceses, assim reconhecidos pelo estado francês.

Mas será que eles consideravam a si mesmos franceses? Será que se sentiam, se viam a si mesmos franceses? Tinham-se e eram tidos como tais pelos demais? Olhando ao redor de si em Paris, Lião, Bordéus ou na Provença eles se sentiam como parte daquele ambiente, daquela paisagem?

Mais: será que a França de seus sonhos não seria um país de população majoritariamente muçulmana, com a história e a cultura marcadas pelo islamismo? Ao invés de "Filha Predileta da Igreja", não gostariam que a França fosse a "Filha Predileta do Islã"?

Discute-se nos tempos atuais a fluidez, a imprecisão das identidades, além da autodeterminação: o indivíduo tem o direito de identificar-se como quiser, mas ao mesmo tempo essa identidade pode ser múltipla, pois o cidadão participa de vários grupos, várias identidades a um só tempo. Não há um só modo de "ser brasileiro" ou "ser francês"; por outro lado, um brasileiro pode ser também, concomitantemente, francês – e vice-versa. O que não é coisa de hoje, pois se atribui a Thomas Jefferson a seguinte frase, que descreve o espírito de uma época: “Todo homem tem duas pátrias: a sua e a França”. O brasileiro Tomás Lopes enriqueceu-a: “Paris é a segunda pátria de toda pessoa inteligente”.

Voltando à imprecisão da identidade, temos que Mário de Andrade já nos tinha adiantado isso em seu Macunaíma: o “Herói sem Nenhum Caráter” é filho da “índia Tapanhumas”, nasce “uma criança feia” e torna-se depois “branco”; e em seu trânsito pelo espaço brasileiro, ao qual se molda, mostra-se diferente em cada local.

Ainda que se aceitasse haver um só modo de “ser brasileiro”, por exemplo, isso estaria em constante mudança, detectando-se na mesma sociedade estágios diversos de um mesmo processo de evolução cultural.

Assim, o que se deve perguntar é o que a República Francesa (incluindo-se aqui o Estado e seu povo) tem feito para a integração dos imigrantes e seus filhos à cidadania e cultura do país, respeitando ao mesmo tempo suas particularidades, as identidades dos grupos menores. O fato de alguém ser muçulmano, judeu, cigano ou filho de africanos ou latino-americanos não é empecilho para que seja tão francês quanto os demais ou para ser reconhecido (inclusive por si mesmo) como tal.

Trata-se, portanto, de um processo de mão dupla: educar a pessoa desde a infância para reconhecer no outro um concidadão, apesar de suas diferenças, ao mesmo tempo em que se educa esse cidadão para reconhecer-se como integrante daquela comunidade, apesar de saber ser diferente dos demais indivíduos.

A simples ação tradicional do Estado já não basta, está ultrapassada. É preciso repensar o conceito de nacionalidade, mas sem cair no nacionalismo chauvinista - o que pode ser difícil.

Não é mesmo um trabalho fácil. Mais do que política de Estado, deve ser um debate da própria sociedade, a atravessar gerações.

Vale também para o Brasil.

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Defendendo a tradição

Nos últimos tempos têm sido implementadas, cada vez mais, políticas de proteção cultural, com vistas a evitar o desaparecimento de práticas ancestrais populares. Alimentação, dança, música, vestuário, linguagem, medicina, organização social, narrativas e mitos – tudo isto é objeto de iniciativas de governos e ONGs, e o Brasil não fica fora dessa orientação. Neste século temos visto multiplicar-se o número de projetos, em nosso país, com o objetivo de “tombar”, conservar “cultura”.
Não sou contrário a essas iniciativas. A cultura muda com o tempo e é preciso garantir seu registro para que esse conhecimento dos antigos não se perca.
Mas será que tudo o que é “tradicional” merece mesmo ser preservado? Não serão algumas práticas, rotuladas como tradicionais, simples resquícios que deveriam deixar de ser cultivados, permanecendo apenas na história, nos livros e nos museus?
Creio que a confusão, quanto a este tema, se dá por causa da classificação aleatória, indiscriminada e sem critério de elementos de cultura popular como imprescindíveis, cuja conservação é tida como necessária para a manutenção das identidades etc. O que é o “tradicional”? Tudo o que é tradicional é bom?
Vejamos um exemplo.
A escravidão durou quase 400 anos no Brasil, deixando profundas marcas em nossa sociedade. Todos sabemos disso. E sabemos também que o tempo em que durou o escravismo foi suficiente para criar uma “tradição”, levando muitos a pensar a escravidão como algo intrínseco ao Brasil, que sem a escravidão, entraria em colapso, iria desfazer-se.
Extinguiu-se por lei a escravidão, e o Brasil não acabou, embora a extinção – incompleta – da escravidão tenha deixado sequelas e problemas ainda sem solução (racismo, exclusão). Eis uma tradição que ninguém quer ver recuperada...
Outro exemplo: discute-se se povos indígenas têm o direito de, no âmbito de suas tradições, sacrificar crianças recém-nascidas por terem alguma deficiência física ou serem fruto de gravidez de gêmeos ou outro motivo, explicável em suas respectivas culturas. Mas os direitos humanos não protegem essas crianças? Ou temos aí uma categoria de crianças que, por serem oriundas de outras “tradições”, devem receber tratamento diferenciado? Criminalizamos a palmada e permitimos o infanticídio?
Os casos são muitos, mas vejamos mais um para terminar.
Saigas (fêmea e filhote) numa reserva natural da Rússia.
Fonte: 
Wikipédia.
Um documentário da TV Animal Planet sobre o mar Cáspio mostrou a situação da saiga (Saiga tatarica), espécie de antílope que habita as estepes ao norte daquele mar. Segundo cálculo de biólogos, há uns 30 anos havia cerca de 1 milhão de saigas habitando a região, número que hoje beira os 250 mil – 3/4 daquele contingente sumiram em 3 décadas, em sua maioria caçados ilegalmente por causa de seus chifres, muito estimados na medicina tradicional chinesa, valendo cada chifre cerca de 4.600 dólares (no mercado negro, é claro).
Parece que o cruzamento de CHIFRE com MEDICINA TRADICIONAL CHINESA não dá bons resultados: também as várias espécies de rinocerontes estão à beira da extinção, vítimas da caça incansável em todo o mundo por causa de seus chifres. Quanto a terem ou não propriedades curativas os chifres destes e outros animais, deixo a explicação aos cientistas. Mas duvido que tenham.
A defesa intransigente e incondicional da preservação de tradições é algo que me irrita por causa disso. A história avança, os tempos mudam, a cultura transforma-se – nem sempre para melhor, sabemos disso, mas cabe a nós controlar a mudança. Creio que nem tudo o que é prática dos antigos, tradicional, folclórica etc. deve ter continuidade. Alguns hábitos estão fadados a tornar-se história.
Já quanto à medicina TRADICIONAL chinesa, esta precisa rever alguns de seus procedimentos.
Do contrário, no início do próximo século o único bicho chifrudo que veremos será o touro… além de outro animal bípede que não irei citar aqui.

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Mandioca, o pão dos índios

O Brasil às vezes me parece que involui, caminha para trás em muitas coisas. E nossa memória vai sendo corroída pelo cupim da desinformação, da indiferença e do despeito.
Na temática do reconhecimento ou não da importância da mandioca no Brasil, compartilho e complemento a informação acima, de Palmério Dória (em sua página no Facebook), com os seguintes pontos, fruto de minhas modestas leituras:
Pão dos Índios – No Brasil Colônia, os cronistas – padres ou não – em seus textos chamavam a mandioca de “pão dos índios”, compreendendo sua importância na alimentação indígena (e também da população em geral).
O francês Jean de Léry, em sua clássica Viagem à Terra do Brasil (Voyage à la Terre du Brésil, século XVI), descreve o processo de fabricação de farinha de mandioca pelos tupinambás da França Antártica (atual Rio de Janeiro) e conta, com certa graça, com que habilidade os índios comiam a farinha, colhendo-a da cuia com os dedos e lançando-a à boca, sem nada derrubar; já os franceses, ao imitar o gesto, ficavam todos enfarinhados… (Lembro-me de que, ao ler a obra de Léry há quase 20 anos, achei o processo descrito por ele muito semelhante ao que tinha ouvido sobre casas de farinha no interior de Alagoas.)
Holandeses no Brasil – Em sua obra Tempo dos Flamengos, o historiador pernambucano José Antônio Gonçalves de Melo informa que, durante seu domínio no Brasil, os holandeses perceberam a importância da cultura da mandioca para garantir a subsistência da população da colônia. Por isso todo proprietário de engenho de açúcar era obrigado a plantar, para cada escravo que tivesse, certo número de pés de mandioca, para manter o abastecimento e evitar a importação de alimentos das colônias portuguesas.
Outra medida dos holandeses: proibiram a derrubada de cajueiros e outras árvores frutíferas, pois eram fonte de alimento da população local.
Os flamengos, para evitar contaminação da água, proibiram também que se jogasse bagaço de cana nos rios, como era costume dos engenhos antes da conquista holandesa.
Alimentos que ajudaram a construir o Brasil merecem um pouco de respeito, mesmo daqueles que não os consomem.

sábado, 17 de outubro de 2015

Janusz Korczak

"Korczak e as Crianças do Gueto", escultura de Boris Saktsier (Museu do Holocausto, Yad Vashem, Jerusalém, Israel), fotografada por Berthold Werner (Fonte: Wikipedia).
O Dia do Professor veio e passou. Eu não ia publicar nada sobre isso, já que a Internet e as redes sociais se encheram de publicações diversas, muitas delas melosas e algumas até jocosas, sobre educação, professores, escolas etc. Mas hoje me lembrei da história de uma figura heroica, lendária até: Janusz Korczak, pedagogo judeu polonês que pereceu no campo de concentração de Treblinka em 1942.
Não vou discorrer sobre a obra de Korczak, pois não sou professor nem pedagogo; nem vou contar a história de sua vida, pois o artigo sobre ele na Wikipedia (inclusive em português) apresenta bastante informação.
Mas os fatos que lhe ocorreram no fim da vida valem uma reflexão.
Ao ser confinado no infame Gueto de Varsóvia, Janusz Korczak era já um pedagogo, professor e escritor reconhecido e respeitado, autor de 24 livros e cerca de 1.400 textos publicados em revistas. Editou periódicos e teve programa no rádio. Em 1937, pelo conjunto de sua obra, foi laureado com um prêmio da Academia Polonesa de Literatura. Um currículo que causaria inveja numa lista de indicados ao Prêmio Nobel, mas que de nada lhe valeu contra a crueldade da guerra.
No gueto, Korczak e outros professores eram responsáveis por cerca de 200 crianças órfãs.
Em 5 ou 6 de agosto de 1942, o Gueto de Varsóvia foi evacuado pelos alemães e Korczak se recusou a fugir, pois não queria abandonar as crianças. Ele e seus colaboradores permaneceram com elas até o fim. Korczak ficou ao lado de suas crianças, com elas foi deportado a Treblinka e com elas pereceu.
Morreu fiel àquilo que defendeu por toda a vida.
Glória imortal à memória de Janusz Korczak e daqueles, famosos ou anônimos, que trataram e tratam a educação como coisa séria!
E vergonha, execração, anátema a todos aqueles que, principalmente no Brasil, transformaram a educação em caso de polícia...

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Caça-fantasmas em Santarém

Você acredita em fantasmas e aparições? Em almas penadas e assombrações?

Muita gente hoje, em pleno século XXI, ainda crê na existência desses seres sobrenaturais. Há gente que nunca os viu, mas crê que eles existem, pois conhece outras pessoas – fidedignas, assegura-se – que viram uma mula-sem-cabeça ou toparam com uma noiva-cadáver nas proximidades de um cemitério, numa noite escura.

Uma pessoa me contou que, certa vez, um parente seu foi perseguido por um lobisomem numa estrada rural. Ele conseguiu escapar; mas enquanto corria em desabalada carreira, ouvia os uivos distantes do lobo humano e, ao mesmo tempo, sentia seu fungado no cangote...

Também aqui na cidade de Santarém, no Pará – onde as assombrações são mais comumente chamadas visagens – não era diferente há cem ou mais anos.

Numa crônica chamada "Garimpando ao Léu", publicada no número 1.287 (29/4/1967) do extinto periódico O Jornal de Santarém e recolhida pelo maestro Wilson “Isoca” Fonseca em sua coletânea Meu Baú Mocorongo, o historiador santareno Paulo Rodrigues dos Santos (1890-1974) diz que em outros tempos a cidade de Santarém era “infestada de fantasmas e assombrações de toda espécie: - curupiras, matintapereras, lobisomens, botos, lêmures, trasgos e outras coisas”, havendo inclusive muitas casas “mal assombradas”, que perturbavam os mais supersticiosos.

Mas vejamos o que ele conta sobre um dos fantasmas que noutros tempos assombravam a cidade de Santarém (o cronista não precisa a data, mas o fato deve ter ocorrido entre o fim do século XIX e início do XX):

“Pelas imediações da chamada Rua Nova ou Rua de Cima* [atual Avenida Rui Barbosa] que passava pela frente do atual cemitério [de Nossa Senhora dos Mártires], surgiam vez por outra uns fantasmas de camisolão branco que davam carreiras nos transeuntes retardatários. Esses faziam campo das suas diabruras às proximidades de barracas ocupadas por algumas bonitas mulatinhas solteiras ou casadas, que, aliás, ao que parecia, não temiam a alma do outro mundo e até lhe davam “teco”...
Certo dia ou certa noite, alguns rapazes resolveram apanhar vivo o fantasma do camisolão. Prepararam sigilosamente o cerco e o apanharam com a boca na botija.
Ao ver-se rodeado de ameaçadores cacetes e chicotes, o fantasma se deu a conhecer: – era o delegado de polícia, naqueles tempos intitulado “prefeito de polícia”!...
Com um sorriso amarelo alegou que fora uma coincidência, pois ele também se disfarçara de camisolão para ver se apanhava o verdadeiro fantasma...
O policial livrou-se da surra, mas não se livrou da chacota popular. Ninguém acreditou na sua história.”
SANTOS, Paulo Rodrigues dos. Garimpando ao Léu. In: FONSECA, Wilson Dias da. Meu Baú Mocorongo. Belém (Pará): Secult; Seduc, 2006. 6 v. V. 5, pp. 1343-1344.

* Nota: Atualmente, o Cemitério de Nossa Senhora dos Mártires, o mais antigo da cidade, tem frente para a Avenida São Sebastião, que no início se chamou Rua Novo Mundo. De acordo com Wilde Dias da Fonseca (Santarém: Logradouros Públicos. Santarém (PA): Instituto Cultural Boanerges Sena, 2007. p. 11-12), o logradouro conhecido, à época do fato aqui narrado, como Rua Nova ou Rua de Cima era a atual Avenida Rui Barbosa, não a Avenida São Sebastião. Como se explica isto? Segundo o mesmo Wilde Fonseca, para a abertura da futura Avenida São Sebastião foi preciso recuar a parte da frente do cemitério, que perdeu parte de sua área original; isto quer dizer que a frente do cemitério era bem mais próxima da Avenida Rui Barbosa.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Paraolímpico, paralímpico

Fiz uma rápida pesquisa sobre o porquê das formas paralímpico(a) e paralimpíada, já que, de acordo com a etimologia e as regras de prefixação do português, as formas adequadas são paraolímpico(a) e paraolimpíada. A respeito deste assunto, achei explicação apenas na página Dúvidas de Português (http://duvidas.dicio.com.br/paraolimpico-ou-paralimpico/), além da Wikipédia (https://pt.wikipedia.org/wiki/Jogos_Paraol%C3%ADmpicos), nas quais se diz que a palavra paralímpico veio do inglês paralympic, que é a junção de paraplegic e olympic.

Não se trata, portanto, de um simples e corriqueiro (quase instintivo) processo de prefixação (junção do prefixo para- ao substantivo olympic ou olímpico), mas sim da criação de uma nova palavra com pedaços de duas outras.

Este processo ocorre com nomes próprios de produtos ou pessoas e até de países, como é o caso da Tanzânia, cujo nome provém da junção de partes dos nomes Tanganica e Zanzibar (com adição da terminação latina -IA), as duas ex-colônias britânicas que se uniram para formar aquele país africano. (Nem vou citar os milhares de nomes próprios que se criam no Brasil com partes dos nomes dos pais, tios, avô ou prima etc.; todo brasileiro conhece alguém cujo nome tem origem nesse tipo de combinação.)

Em português o termo paraolímpico(a) é o resultado natural do processo de prefixação de para- ao substantivo/adjetivo olímpico(a). Poder-se-ia suprimir o A final do prefixo (a exemplo dos pares hidroelétrico e hidrelétricohidroavião e hidravião e outros), mas nunca o O inicial do radical que o recebe: parolímpico(a).

O Brasil adotou nos documentos oficiais o uso dos termos paralimpíada e paralímpico(a), seguindo tendência internacional; mas é claro que as formas paraolímpico(a) e paraolimpíada continuam valendo e podem ser usadas livremente - isto é algo que ninguém pode proibir.

Assim, aqueles que optam por usar as formas paraolímpico(a) e paraolimpíada têm razão em fazê-lo, pois tais termos já estão estabelecidos e estão de acordo com a estrutura e a tradição de nossa língua, ainda que os termos oficiais do momento sejam paralímpico(a) e paralimpíada.

Santarém, PA, 14/9/2015. Editado em 9/9/2016.

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quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Domingão da Independência

Foto: Júlio César Pedrosa, 9/9/2015
Local: Travessa Turiano Meira, esquina com Av. São Sebastião - Santarém, PA
Parece que este ano os festejos de Sete de Setembro foram bastante animados em Santarém, Pará: os organizadores do 1º Domingão da Independência estavam "alegres" bem antes das comemorações, já durante a preparação e divulgação do evento, como se vê pelos erros do cartaz abaixo.
Se não, como explicar INDENPENDÊNCIA, ÍNICIO, PRÊMIAÇÃO, HRS?
Já a crase em até às é possível, desde que se tenha aqui a preposição a depois de até e antes de as 15:00h. (A locução até a é equivalente a até; é correta, mas julgo desnecessária, pois só até já expressa o sentido preciso.)
Mas uma coisa é certa: se o revisor de texto deles for demitido, quem assume é o Aécio...

Tataravó, tetravó ou trisavó?

Hoje os britânicos comemoram que a rainha Isabel II (ou Elizabeth, para os íntimos) completa 63 anos e 217 dias de reinado, superando o recorde da rainha Vitória, que reinou de 1837 a 1901, período conhecido como Era Vitoriana. 

Mas enquanto a monarquia britânica retoma cada vez mais seu prestígio, nossa imprensa derrapa, pois além das acusações de parcialidade, partidarismo, manipulação, golpismo e coisas que tais, soma-se o pecado de não conhecer direito o vocabulário da própria língua.

Toda a imprensa tupiniquim noticia que a rainha Isabel II "quebrou o recorde de sua TATARAVÓ Vitória".

Isto é um erro dos mais grosseiros!

A rainha Vitória foi TRISAVÓ de Isabel II. Vejamos a linha genealógica:
  • Vitória foi mãe de Eduardo VII;
  • Eduardo VII foi pai de Jorge V;
  • Jorge V foi pai de Jorge VI;
  • Jorge VI foi pai de... Isabel (Elizabeth) II.

Se Vitória foi mãe do bisavô de Isabel II, logo foi sua TRISAVÓ. Claro como o sol.

Para completar: TATARAVÓ é forma popular, que devemos evitar nos textos escritos e formais; a forma adequada e indicada é TETRAVÓ, feminino de TETRAVÔ.

A tetravó de Isabel II foi a princesa Vitória de Saxe-Coburgo-Saalfeld, esposa do príncipe Eduardo, que era filho do rei Jorge III e irmão dos reis Jorge IV e Guilherme IV.

Além de não ter vergonha do mal que faz ao país, parte de nossa imprensa ainda precisa aprender a consultar dicionários e enciclopédias.

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Tropa ou tropas? OMAC explica!

Capa do número 6 de OMAC, julho-agosto de 1975.
Fonte: Wikipédia.
OMAC (One Man Army Corps, "Exército de Um Só Homem") é uma personagem futurista de histórias em quadrinhos, criação de Jack Kirby para a DC Comics. Kirby foi um dos mais talentosos e prolíficos artistas do ramos das HQs e sempre gostei de sua arte de traço inconfundível. (Podem exprobrar-me os americanófobos: gosto de quadrinhos americanos... mas só dos clássicos!)
Mas esta postagem não tem nada que ver com HQs. É que sempre me lembro de OMAC quando deparo com certo tipo, cada vez mais frequente, de erro de tradução.
Ocorreu-me isso recentemente ao ver o documentário A II Guerra Mundial Vista do Espaço, no canal History 2; ao citar a invasão da fronteira ocidental da União Soviética pelo exército alemão, o locutor diz: "Num front de mais de 2.900 km, 4 milhões de TROPAS alemãs invadem a URSS ao mesmo tempo".
4 milhões de tropas! É muito ou pouco? É muito, mas parece que pode ser muito mais... de acordo com o pensamento de quem traduziu isso.
A palavra portuguesa tropa tem valor coletivo, refere-se a um grupo - de soldados, neste caso. Uma tropa pode ser um pelotão, uma companhia ou bateria, um batalhão ou esquadrão, uma brigada, uma divisão ou um exército inteiro; mas nunca um só indivíduo. O Dicionário Eletrônico Caldas Aulete dá diversas acepções para a palavra tropa, todas com valor coletivo, nunca referente a um só indivíduo. Não consigo entender como se continua a cometer esse erro grosseiro.
Se considerarmos que os 4 milhões de tropas referem-se a pelotões (dos grupos citados, o menor, com cerca de 30 indivíduos), a União Soviética teria sido invadida por cerca de 120 milhões de soldados, número muito maior que toda a população alemão de antes da II Guerra, que talvez fosse de uns 80 milhões. Ainda que fossem grupos de combate de cerca de 10 elementos, ainda seriam 40 milhões de soldados, número também exagerado.
O número se refere, de fato, ao contingente de militares contados individualmente; eram, portanto, 4 milhões de homens, não 4 milhões de tropas. E o mesmo erro de tradução de tropa se repetiu outras vezes; fiquei enfadado e nem vi o filme até o fim. O canal History realmente não aprende! E continua a desapontar-me, pois o mesmo erro tem  ocorrido em outros programas de temática semelhante. Esse canal de TV dos Estados Unidos talvez seja bom em history (há controvérsias!); mas quando se trata de language...
Por isso, lembremo-nos: uma tropa é um conjunto; 30 soldados não são 30 tropas, são 1 tropa de 30 soldados.
Somente na ficção científica existe tropa de um homem só...

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Subconsciente colonizado

A colonização cultural e mental de nosso povo fica cada vez mais evidente – pelo menos para mim.

Observo-a em certos detalhes, como o fato de correspondentes brasileiros de imprensa na França pronunciarem nomes franceses como se fossem ingleses. Não é só o nome da famosa torre parisiense, é todo e qualquer nome próprio.

Outros povos, ainda não dominados por essa mania, costumam ter dois procedimentos em face de uma situação destas:

1- Pronunciar tais palavras como na língua de origem; ou

2- Pronunciá-las como se fossem nomes de sua própria língua.

Os próprios francófonos não têm a menor vergonha de pronunciar palavras estrangeiras pela fonologia e fonética de sua própria língua.

Mas nós as pronunciamos como se fossem palavras inglesas, pois em nosso subconsciente achamos que só nós falamos o português e os demais povos todos falam inglês.

O trabalho já está feito; desmanchá-lo será difícil, senão impossível.

Pode parecer coisa pouca ou desimportante, mas não é.

Concordância verbal na TV

O ensino de língua portuguesa enfrenta dificuldades no Brasil…

No quadro “Tudors Terríveis” (“Terrible Tudors”) do programa inglês Deu a Louca na História (Horrible Histories), exibido atualmente pela TV Escola, um diálogo apresenta o seguinte:

Derramastes minha cerveja! Desafio-te a um duelo!”

Mas deveria ser derramaste, pois se trata da segunda pessoa do singular do pretérito perfeito do indicativo; a forma com S final é da segunda pessoa do plural: derramei, derramaste, derramou, derramamos, derramastes, derramaram.

Que haja confusão, na língua coloquial de muitos brasileiros, entre formas da segunda e terceira pessoa, ou entre singular e plural, é coisa compreensível; a variedade de formas (alterações fonéticas ou morfológicas) é grande e a linguística explica isso.

Mas que isso se apresente em programas educativos é inaceitável (a não ser que se trate de metalinguagem, o que não é o caso). Isto é, no mínimo, fruto de descuido.

É mais um exemplo de nivelamento por baixo: para que aprender estruturas linguísticas que não são usadas no dia a dia? Perda de tempo!

Pobre Camões! Por que ler suas obras, se ninguém fala (e na verdade jamais falou) do modo como ele as compôs?

sexta-feira, 31 de julho de 2015

Falta de pauta… ou “pauta” do que fazer

Pergunta um repórter a um desabrigado das enchentes recentemente ocorridas no Rio Grande do Sul:

“O senhor tem saudade da sua casa?”

Pelo fantasma de César! Isto é pergunta que se faça? É falta de assunto?

Quando me lembro de que a imprensa brasileira já teve em seus quadros gente como Euclides da Cunha e Nelson Rodrigues…

Sonho de uns, pesadelo de outros

Quase todo dia ouço ou leio em algum lugar coisas como:

“Acredite em você mesmo! Acredite nos seus sonhos! Corra atrás deles, você merece realizá-los!” Blá blá blá, nhenhenhém etc.

Eis o mantra de nosso tempo… e uma de nossas maiores falácias!

Vamos cair na real! O povo acha mesmo que todo o mundo tem o direito de realizar tudo aquilo que deseja? Que todos podem fazer aquilo que lhes dá no bestunto?

Alguém já imaginou como seria se um indivíduo chamado Adolf Hitler tivesse acreditado mais em si mesmo e perseguido com mais afinco seu “sonho”? Já imaginaram o estrago, o pesadelo que seria isso?

Nem tudo se deve realizar, nem todos os desejos devem ser satisfeitos.

Antes de partir para a empreitada de realizar seus “sonhos”, verifique se isso é conveniente para você mesmo… e principalmente para seus vizinhos.

sábado, 25 de julho de 2015

Democracia e autoritarismo: o caso do Uber

Os recentes incidentes ocorridos em cidades brasileiras, envolvendo usuários ou prestadores do serviço de transporte individual Uber e taxistas, demonstram o quanto ainda estamos atrasados no caminho que conduz a uma sociedade verdadeiramente democrática – não apenas no papel, mas de fato.

Em seu clássico – e sempre atual – Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda diz que “A democracia no Brasil sempre foi um lamentável mal-entendido” (26. ed. 9. impr. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 160). Teria ele dito isso como constatação de não estarmos prontos para ela ainda na década de 1930? (Não se pense por isso que o pai do Chico fosse contra a democracia… au contraire!)

O fato, porém, é que podemos – tosca e grosseiramente, reconheço – distinguir da seguinte maneira a democracia do autoritarismo: enquanto este levanta muros a impedir os movimentos do cidadão, a democracia abre caminhos e portas, cabendo ao cidadão escolher se irá ou não seguir tais caminhos ou passar por tais portas, sem que o Estado ou outrem lhe “dite” (daí a origem do termo ditadura) o que fazer, mas ficando esse mesmo cidadão responsável por seus atos, suas escolhas.

Não sei se algum dia serei usuário do aplicativo Uber; acho que prefiro os serviços de um taxista conhecido e de confiança.

Mas não posso ser contrário a esse serviço; considerando-se os problemas de locomoção enfrentados por nossa população em todo o país, proibir uma iniciativa de transporte que já teve sucesso em outros países é um passo para trás.

Muitas pessoas não possuem carro e não desejam tê-lo (é o meu caso), mas também querem algo além do péssimo transporte coletivo de que dispomos, e o Uber é mais uma opção. Por que não permiti-lo e regulamentá-lo?

Ao proibi-lo, com o agravante de não permitir discussão pública sobre o assunto, nossas administrações municipais dão mostras de agir autoritariamente, atendendo a interesses cartoriais, corporativos e não visando à coisa pública.

segunda-feira, 30 de março de 2015

Peixe na Páscoa e pindaíba

Fonte: http://casaunb.blogspot.com.br
Já se tornou uma rotina anual na vida de Maria Aparecida. O dia é a Sexta-Feira da Paixão; o local é uma área de comércio de uma grande cidade brasileira, onde pessoas formam filas para receber peixes distribuídos gratuitamente. A iniciativa é quase sempre de comerciantes locais, associados ou por iniciativa própria, que todos os anos realizam essa ação social, o que garante que pessoas carentes possam celebrar a Páscoa dentro da tradição católica de comer peixe nesta data.

Maria Aparecida levantou-se cedo, antes de nascer o dia. Andou um tanto a pé, tomou um ônibus – “Graças a Deus já não preciso pagar condução!” – e posicionou-se na fila, já formada e com bastante gente. A distribuição logo começa. Nada de bacalhau, é claro – e caro! Merluza, tainha, pescada-branca, cavalinha, sardinha – estes e outros peixes são distribuídos em porções mais ou menos iguais e suficientes, garantindo a muitas famílias a peixada do fim-de-semana pascal.

Como de costume na Semana Santa, a mídia pauta-se pela cobertura da celebração da segunda principal data do calendário da Cristandade. As matérias jornalísticas repetem-se ano a ano: o crescimento da indústria do chocolate e as novidades nos formatos e sabores dos ovos e outras chocolatagens; a Via Dolorosa em Jerusalém; filipinos que se pregam a cruzes; o aumento do preço dos peixes e outros frutos do mar; dicas para economizar no almoço de Páscoa… além dos muitos acidentes automobilísticos causados por má condição das estradas, imprudência ou apenas excesso de álcool.

Um repórter de televisão aproxima-se da fila e entrevista Maria Aparecida, uma senhora que aparenta pouco mais de 60 anos; respondendo a questionamentos do jornalista, ela diz que é aposentada, mora com uma filha e alguns netos, e veio, como nos anos anteriores, em busca de peixe para a Páscoa, pois o preço do pescado sobe muito nesta época e ela não o pode comprar. O repórter pergunta a ela: “Há quanto tempo a senhora vem aqui para buscar o peixe que os comerciantes distribuem?” Ela responde: “Que eu me lembre, já faz uns 15 anos ou mais.”

Ao ver isso na TV, fico pasmado… 15 anos! Começo a pensar no fato e digo a meus botões que alguma coisa está errada. Como pode isso? Quer dizer que nos últimos 15 anos essa senhora não conseguiu melhorar sua condição social de modo que possa comprar ela mesma seu próprio peixe? Ou será que apenas aproveita a facilidade de receber peixe de graça? A primeira hipótese é a mais plausível, creio no depoimento de Maria Aparecida, condizente com situações que nós mesmos observamos no dia a dia; e o caso dessa senhora não é exceção, mas apenas um dentre muitos.

O Brasil, apesar das transformações que sofreu nas últimas décadas, não tem possibilitado ainda a todos os seus filhos uma melhoria visível e palpável nas condições de vida – pelo menos dentro do que se poderia esperar em face do crescimento econômico que vimos tendo. A economia diversifica-se; as safras de grãos e a criação de gado quebram seus recordes, ano após ano; grupos empresariais brasileiros adquirem empresas no exterior; empresários brasileiros aparecem entre os mais ricos do mundo; o País desponta como autossuficiente em petróleo, anunciando a descoberta de enormes estoques em sua faixa litorânea – é o Pré-Sal, que já produz.

O salário-mínimo teve ganho considerável na última década, ainda que esteja longe do valor que deveria ter. A extensão dos direitos trabalhistas aos empregados domésticos (em sua maioria, mulheres) garante segurança jurídica a muitos trabalhadores das cidades. A Voz do Brasil anunciou há algum tempo que, no primeiro trimestre de 2014, a criação de novos empregos cresceu 14% em relação ao mesmo período de 2013; nunca tivemos tantos trabalhadores com carteira assinada, dizia a reportagem. Já é promessa antiga reduzir para 5 (cinco, sim!) dias a demora para abertura de empresas no País.

Vozes discordantes, porém, já vêm há tempos classificando a situação econômica do País como preocupante, devido a um visível processo de desindustrialização em curso. Será mesmo? Talvez. É fato que o Brasil deve seu desempenho econômico recente, em grande parte, à exportação de commodities, o que, a meu ver, não é o ideal; devíamos exportar também produtos industrializados, mas estamos importando-os da China – aliás, indústrias nossas têm fabricado lá e importado e distribuído aquilo que antes se fazia aqui. Isto não me parece bom.

Reclama-se ainda da lentidão na necessária ampliação da infraestrutura de energia, de transportes e comunicações; das dificuldades impostas pela burocracia pesada e suas taxas; da baixa média escolar da população e da falta de mão de obra qualificada; da ainda pouca produção de pesquisas científicas e patentes; da telefonia e Internet caras e de baixa qualidade; dos blecautes ou apagões que atingem algumas regiões; da falta d’água devido à ausência de planejamento e melhor uso dos recursos hídricos…

Embora os problemas de infraestrutura, educação e saúde persistam devido, entre outros motivos, a empecilhos como uma burocracia em parte incapaz, emperrada e lenta, a falta de planejamento e a tendência nefasta de ações governamentais feitas a toque de caixa – problemas crônicos do Brasil –, não se pode acusar o Estado brasileiro de nada ter feito nos últimos anos para reduzir a miséria e fazer crescer o poder aquisitivo da população mais pobre; diga-se o mesmo de ações afirmativas (apesar de polêmicas e com resultado efetivo sempre discutível) ou do acesso a medicamentos mais baratos, além da expansão da rede pública de ensino. Programas sociais como a Bolsa Escola, criada por FHC e continuada por Lula, que a ampliou e mudou o nome para Bolsa Família, realmente possibilitaram o aumento da renda de muitíssimas famílias por todo o País – ainda que se discorde da estratégia de dinamizar a economia por meio de distribuição de benefícios em dinheiro. O programa Mais Médicos, apesar de polêmico, mostrou resultados, sendo suas ocorrências negativas tidas apenas como casos isolados. É fato verificável o avanço social – e os desvios são exceções a ser corrigidas.

Não sei por quantos anos ainda Maria Aparecida continuará a sair de casa, na Sexta-feira da Paixão, para receber de graça o peixe necessário à conservação da tradição e da fé que recebeu de seus pais e avós. Oxalá suas condições de vida melhorem e ela possa ir ao mercado e comprar o peixe que quiser, sem depender de ninguém.

As futuras gerações, não importa que crenças tenham, com certeza verão tudo isto como fatos de uma época de transição, de saída de um mundo de desigualdades para uma era de bem-estar social. Assim esperamos.

P.S.: Estava faltando falar da palavra pindaíba. Os dicionários a definem como “falta de dinheiro”, e “estar na pindaíba” é “estar sem dinheiro, na penúria”; o mais intrigante, porém, é saber donde veio esse termo brasileiríssimo.

É muito provável que a palavra pindaíba seja originária da língua tupi. Em tupi, pinda’yba significa “vara de pescar”; é termo composto de pindá, “anzol”, e -‘yba, sufixo nominalizador com a noção de “árvore, planta” e usado geralmente com nomes de frutos. O elemento -‘yba entra em várias palavras presentes no português, como:
  • cabreúva – de kaburé-‘yba, “árvore do caburé” (caburé é uma espécie de mocho ou coruja);
  • cajaíba – de akaiá-‘yba, “cajazeira”;
  • carapanaíba – de karapanã-‘yba, “árvore do carapanã” (esta planta é usada como repelente natural de insetos; carapanã é termo comum na Amazônia para mosquito ou pernilongo);
  • maniva – de mani-‘yba, “planta da mandioca”, mais precisamente a parte aérea da planta; já mandioca originou-se de mani-‘oka, “mani de arrancar”, termo que designa as raízes da maniva. Maniçoba veio da palavra tupi mani-soba, “mani-folha”, ou seja, é designativo das folhas da planta (soba = “folha”).

Assim, uma explicação para o fato de pindaíba, em português, significar “falta de dinheiro” é que a pessoa na pindaíba está em tamanha penúria, que precisa pescar para comer, daí a necessidade da vara de pescar. O resto vem das transformações de forma e sentido que a línguas sofrem sem cessar.

Para terminar: O termo pindá entra na formação de Pindamonhangaba, nome de uma cidade paulista do Vale do Paraíba do Sul. O nome provém da composição pindá-monhang-aba: pindá + monhang “fazer” + (s)aba, sufixo nominalizador usado geralmente com verbos, com o sentido de “lugar, instrumento, tempo”, variando o sentido de acordo com o contexto. Portanto, pindá-monhang-aba significa “lugar de fazer anzóis”.

[Santarém, Pará, 18/4/2014. Editado em 30/3/2015.]

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Novo endereço!



Desde o último sábado, 21 de fevereiro de 2015, estou migrando para um blogue em nova plataforma, o Wordpress. Já publiquei lá alguns artigos novos e também, pouco a pouco, transferirei o conteúdo deste blogue para o novo endereço:



Visitem-me lá! Obrigado!

sábado, 21 de fevereiro de 2015

À vaidade do mundo

Salomão retratado por Gustave Doré. Fonte: Wikipedia.
Vanitas vanitatum, omnia vanitas.
(Liber Ecclesiastes, I, 2)

“Vaidade das vaidades, tudo é vaidade!” – diz o milenar livro hebraico do Qoheleth ou Eclesiastes, atribuído ao rei Salomão. O filho e sucessor de Davi, já entrado em anos, experiente e no fim da vida, enumera e condena toda a vaidade e os desenganos do mundo, e termina advertindo os homens para a importância do temor de Deus e observância de Seus preceitos (Eclesiastes XII, 13-14).

Mas nem todos concordam quanto aos reais motivos que levaram o sábio rei Salomão, identificado como o próprio (autor do) Eclesiastes, a clamar em palácio contra o orgulho do mundo: em seu romance A Cidade e as Serras, Eça de Queirós põe na boca da personagem Jacinto a explicação do porquê de Salomão se voltar, no fim da vida, à condenação da vaidade e dos prazeres:

"Quando descobre esse sublime retórico que o mundo é ilusão e vaidade? Aos setenta e cinco anos, quando o poder lhe escapa das mãos trêmulas, e o seu serralho de trezentas concubinas se lhe torna ridiculamente supérfluo. Então rompem os pomposos queixumes! Tudo é vaidade e aflição de espírito! nada existe estável sob o Sol! Com efeito, meu bom Salomão, tudo passa – principalmente o poder de usar trezentas concubinas! Mas que se restitua a esse velho sultão asiático, besuntado de literatura, a sua virilidade – e onde se sumirá o lamento do Eclesiastes? Então voltará em segunda e triunfal edição, o êxtase do Livro dos Cantares!…" (A Cidade e as Serras, capítulo IX.)

Um dos sete pecados capitais, classificados e descritos pela teologia católica na Idade Média – os outros são avareza, gula, inveja, ira, luxúria e preguiça –, dos quais fosse talvez o mais grave, a vaidade, também chamada orgulho ou soberba, parece ter perdido seu posto de primazia para a preguiça, pecado ou comportamento tão pouco aceito hoje, tempos de valorização do trabalho e do esforço, existindo inclusive cada vez mais pessoas viciadas em trabalho: workaholics.

Na Idade Média havia mesmo quem temesse ser considerado vaidoso por seu conhecimento das letras: literatos muito versados nos clássicos grego-latinos esforçavam-se para redigir em baixo latim, mais próximo dos falares populares românicos, ou mesmo nas línguas vernáculas que principiavam a estabelecer-se, com o propósito de não serem tidos por orgulhosos de sua erudição, como conta o linguista Benvenuto Terracini, a certa altura de sua obra Conflictos de Lenguas y de Cultura (1).

Já o trabalho era visto como um mal necessário: é preciso trabalhar e alguém precisa fazê-lo. A sociedade medieval europeia era dividida em três grupos principais ou estamentos: o clero (os orantes), a nobreza (os militantes ou guerreiros) e a plebe (os laborantes ou trabalhadores), presa à terra e encarregada de produzir os necessários suprimentos para a sociedade, enquanto os nobres garantiam a segurança do feudo, do reino e da Cristandade e o clero cuidava das coisas do espírito e do bom comércio dos homens com Deus…

Nos dias atuais, porém, a vaidade – ou orgulho ou soberba – deixou de ser tida por comportamento condenável. Sob sua forma prática, o exibicionismo ou ostentação, é posta a público em todos os lugares e situações; nem a Igreja e seus fiéis escapam disso. Nos muros e na publicidade oficial de importante escola católica paraense era possível ler, até certo tempo atrás, a frase DÁ ORGULHO (?!), destacada e em letras garrafais, o que seria coisa de causar espécie a São Jerônimo, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Santa Clara ou qualquer outro santo, pai ou doutor da Igreja que, embarcado numa máquina do tempo, viesse parar em nossa época e visse tais dizeres na porta de um colégio confessional…

Seja como for, o assunto é bastante recorrente na literatura do Ocidente. No mundo lusófono, produziu um dos mais belos sonetos da língua portuguesa, atribuído ao poeta brasileiro Gregório de Matos Guerra (1636-1696), conhecido como Boca do Inferno:

Desenganos da Vida Humana, Metaforicamente

É a vaidade, Fábio, nesta vida,
Rosa, que da manhã lisonjeada,
Púrpuras mil, com ambição dourada,
Airosa rompe, arrasta presumida.

É planta, que de abril favorecida,
Por mares de soberba desatada,
Florida galeota empavesada,
Sulca ufana, navega destemida.

É nau enfim, que em breve ligeireza,
Com presunção de Fênix generosa,
Galhardias apresta, alentos presa:

Mas ser planta, ser rosa, nau vistosa
De que importa, se aguarda sem defesa
Penha a nau, ferro a planta, tarde a rosa? (2)


Este mesmo poema é também atribuído, com ligeiras variações, inclusive de título, ao padre português Antônio da Fonseca Soares (1631-1682), também conhecido como Frei Antônio das Chagas:

À vaidade do mundo

É a vaidade, Fábio, desta vida
Rosa que na manhã lisonjeada

Púrpuras mil com ambição coroada
Airosa rompe, arrasta presumida;

É planta que de abril favorecida
Por mares de soberba desatada,
Florida galera empavesada,
Sulca ufana, navega destemida;

É nau, enfim, que em breve ligeireza,
Com presunção de fénix generosa,
Galhardias apresta, alentos presa.

Mas ser planta, rosa e nau vistosa
De que importa, se aguarda sem defesa
Penha a nau, ferro a planta, tarde a rosa? (3)


Este é apenas um dos exemplos da problemática ligada à obra de Gregório de Matos, que se apresenta como objeto de polêmicas, devido à dificuldade de indicar com precisão a autoria de parte dela. É algo que ocorre também com os poetas Luís Vaz de Camões e Manuel Maria du Bocage e com o escultor Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho.

Mas, como também dizem as Escrituras: “A quem tem, mais se lhe dará” (Mateus, XIII, 12). Portanto parece ser praxe atribuir a autoria questionável de um objeto a quem já tem muito em seu nome. E assim o catálogo das obras atribuídas a Gregório de Matos, Camões, Bocage e Aleijadinho só segue aumentando!

Coisas da vaidade do mundo…

Notas:
1- TERRACINI, Benvenuto. Conflictos de Lenguas y de Cultura. Buenos Aires: Imán, 1951.
2- In: SPINA, Segismundo. A Poesia de Gregório de Matos. São Paulo: Edusp, 1995. p. 108.