quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Reforma ortográfica radical

Eis que pinta por aí mais uma proposta de reforma ortográfica do português, desta vez de forma radical: querem eliminar o H, o Ç, o SS, o CH, fixar Z como única representação do fonema /z/ etc. Mas tem-se a impressão de que a proposta de reforma ortográfica é movida menos pela vontade de racionalizar a escrita do que pela preocupação com a dificuldade de dominar a escrita em português, sua acentuação gráfica e pontuação. Um resumo da proposta pode ser visto aqui: http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2014/08/comissao-do-senado-estuda-abolir-c-ch-e-ss-da-lingua-portuguesa-4577821.html.
A ortografia do português é resultado de um processo histórico. A língua transformou-se com o tempo, o sistema fonológico reorganizou-se e a ortografia não acompanhou isso.
Escrevemos casa com S porque em latim se escrevia assim, apesar de ter pronúncia diferente; o mesmo se diga de exército, exame, cebola, face, gelo, axila, sintaxe, almoxarifado, alface, gesso, agasalho, camisa e muitíssimas outras palavras de origem latina, grega, árabe, germânica etc. Isto é exemplo de escrita etimológica, isto é, de acordo com a origem das palavras.
Grafamos chama, chapéu e chave com CH porque a pronúncia, até o século XVII (e talvez XVIII), era diferente: o CH do português representava o mesmo fonema do espanhol CH; portanto, nossos ancestrais linguísticos pronunciavam TCHEIRO, TCHAPÉU, TCHAMA, TCHAVE, FATCHADA, CATCHORRO etc. A pronúncia mudou, a grafia ficou. (Em algumas regiões rurais de Portugal, porém, ainda é funcional a oposição entre os fonemas representados por X (como em roxo) e CH (como em chapéu), o que significa que o processo de neutralização ainda se encontra em curso.)
Parece-me esta apenas mais uma proposta radical (como outras que já apareceram) de reformar a ortografia, combinando grafia com pronúncia, sem levar em conta os hábitos linguísticos dos demais países que falam português e as diversas variações decorrentes da posição ou combinatória dos fonemas; além disso, seus proponentes parecem conhecer pouco sobre a dinâmica das línguas em geral ou sobre fonologia, fonética (são áreas de estudo diferentes, apesar de próximas).
A ortografia de uma língua deve abranger todas as suas pronúncias. Todos escrevemos porta, falar, pasta e asma do mesmo jeito, apesar das muitas pronúncias possíveis dos fonemas /r/ e /s/ em português; isto é possível porque nossa grafia, apesar de apresentar elementos etimológicos, é fonológica (não fonética, o que não existe): representamos fonemas, que são modelos mentais sonoros, e não pronúncias, que são acidentais e particulares.
Se vivo estivesse, o mais polêmico gramático brasileiro do século XX, Napoleão Mendes de Almeida, com certeza diria que se trata de mais uma "reforma ortográfica para analfabetos"... Não concordo com todas as ideias de Napoleão, mas considero essa e outras propostas parecidas uma grande imbecilidade – assim mesmo, com C, pois veio do latim imbecillitas; a pronúncia romana era [imbekíllitas], e os dois LL não estão aí como enfeites, pois se trata de consoante dupla, que se simplificou na passagem do latim para o português.
Quem quiser grafar imbecilidade com S, fique a gosto.