Em fins de 2012, no processo
de composição de seu futuro secretariado, o recém-eleito prefeito da cidade de
São Paulo, Fernando Haddad, nomeou Juca Ferreira, ex-ministro da Cultura, como
secretário de Cultura do município. Juca Ferreira é baiano, e parece que sua escolha como secretário desagradou a algumas pessoas. Em 10 de dezembro,
após a indicação de Ferreira, o jornalista Gilberto Dimenstein publicou em sua
coluna na Folha de S. Paulo um artigo, bastante irônico, em que
comenta o fato de que certos setores (ou seja, as tradicionais panelas) ligados à cultura na cidade de São Paulo
ficaram incomodados com a nomeação de Juca Ferreira. Com o título “Haddad precisa importar um baiano?”,
o texto, tão logo saiu a público, foi taxado como preconceituoso e xenófobo,
além de muito criticado. Parlamentares defensores dos direitos de minorias se
imiscuíram no assunto, chegando um deles a dizer que se tratava de preconceito
antinordestino “dos paulistas”: de um momento para o outro, 42 milhões de
cidadãos foram considerados racistas.
Não vejo discriminação no
texto de Dimenstein, e o uso do termo racismo é equivocado e exagerado: a população
baiana não constitui uma raça a parte da brasileira (nem os brasileiros são uma
raça), logo ninguém pode ser tido como alvo de racismo apenas por ser nascido
na Bahia ou em qualquer canto do Brasil. Infelizmente, discriminação regional
também existe, e muita, no Brasil, todos sabemos disso (não apenas em relação à
Bahia, mas a qualquer lugar); mas daí a ser racismo vai uma distância grande –
pequena ou nula, porém, para quem conhece e domina com pouca clareza os termos vernáculos.
No dia seguinte, 11 de
dezembro, motivado pela polêmica em torno de seu texto, Dimenstein publicou uma tréplica, sob o título “Sou mesmo xenófobo?”, em que, com
razão, critica a leitura superficial, distorcida e equivocada que recebeu.
Em seus dois artigos,
Gilberto Dimenstein lançou mão da ironia, e parece-me que as pessoas estão
perdendo (se é que a tinham) a capacidade de perceber e entender a ironia – o
que é por demais irônico, principalmente num país que se gaba de
ter, como maior expoente de sua literatura, um autor conhecido e reconhecido
por sua ironia fina, à inglesa, o que o tornaria digno de ocupar lugar entre os
maiores nomes da literatura universal. Refiro-me obviamente ao Bruxo do Cosme
Velho, Machado de Assis.
Lendo-se atentamente ambos os artigos de Gilberto Dimenstein, percebe-se que ele não foi preconceituoso contra baianos ou
habitantes de outros estados do Brasil. Não digo isso porque sou paulista; parece haver uma tendência
leviana de relacionar uma espécie de “elite branca reacionária”
com a população paulista em geral, e paulistana em particular; de
um momento para o outro, a culpa de todos os problemas do Brasil
passou a ser lançada sobre os paulistas, e o estado de São Paulo
tornou-se a Geni nacional, alvo de pedradas sem direito a reclamação.
Se
existe essa tal “elite branca reacionária”, não faço parte dela,
mesmo porque não me considero branco; estamos na era da
autoafirmação, e requeiro, portanto, o direito de não me
considerar branco, nem negro, nem índio, embora tenha entre meus
ancestrais gente destas três origens; considero-me mestiço.
Sou um paulista típico, pois, como grande parte da população de
São Paulo, sou filho de gente que veio de outras regiões: meus pais
são nordestinos, mas nem por isso me julgo menos paulista que
qualquer descendente de Tibiriçá, de Brás Cubas, de João Ramalho
ou do Bacharel de Cananeia. Amo o Brasil e a cidade e o estado em que
nasci, como os demais paulistanos e paulistas os amam, e como os
nascidos em outras plagas amam sua terra natal, também; mas não
abro mão do direito de discordar das coisas erradas que vejo lá,
assim como não posso concordar com críticas e acusações injustas.
Paulistas
e paulistanos, fluminenses e cariocas –
Interrompo aqui meu pensamento para uma pequena digressão
semântico-lexical, necessária devido a certos equívocos cometidos
por desconhecimento ou confusão.
Não
devem ser confundidos os termos paulista e paulistano.
Paulista (adjetivo e substantivo de dois gêneros, portanto variável apenas em número) remete ao estado de
São Paulo, portanto o paulista é o nascido, originário ou
habitante de qualquer ponto desse estado. Já paulistano se
refere à cidade de São Paulo, sua capital, sendo apenas os
naturais ou habitantes desta cidade os paulistanos. Portanto, quem nasce em
Cotia, Osasco, Guarulhos, Santos, Taubaté, Teodoro Sampaio, Ribeirão
Preto, Vargem, Mococa, Mongaguá, Cunha, Juquitiba, Taboão da Serra, Presidente Epitácio, Bertioga e outros 630 municípios é paulista, mas não
paulistano. Assim, o governante paulista é Geraldo Alckmin e o
governante paulistano é Fernando Haddad.
O
torcedor do São Paulo Futebol Clube é conhecido como são-paulino.
Há ainda os termos são-pauleiro e paulisteiro,
designativos daqueles que se dirigem ao estado de São Paulo para
trabalhar, em ocupação temporária ou não, na roça ou na cidade. Na obra em que estudou o tema dos são-pauleiros, Ely Souza Estrela usou a forma sampauleiro,
que não
se encontra registrada no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa
da Academia Brasileira de Letras; também
não a encontrei em dicionários. O termo
parece ser bem antigo: o dicionário em rede da Real Academia Galega define sampauleiro
ou pauleiro, em galego – a língua mais próxima do português – como
“paulista”.
Confusão
semelhante ocorre com os termos fluminense e carioca. O
primeiro designa o nascido ou habitante do estado do Rio de Janeiro,
enquanto carioca se refere exclusivamente à cidade do Rio de Janeiro, capital fluminense. Creio que, em parte, a
confusão advém da cultura futebolística: como há um clube
esportivo com o nome Fluminense Football Club, a linguagem popular
acabou por atrelar o adjetivo fluminense ao clube de futebol,
designando com ele sua torcida e tudo o que lhe diz respeito;
estendeu-se então o nome carioca ao estado, e as disputas
esportivas de nível estadual passaram a ser chamadas cariocas,
a exemplo do próprio campeonato estadual de futebol, o Cariocão (deveria ser Fluminensão!). Torcedores do América, Bangu, Botafogo, Flamengo, Vasco da Gama etc.
parecem não aceitar ser chamados fluminenses, ainda que sejam
naturais do estado do RJ, para não ser confundidos com os torcedores do Tricolor das Laranjeiras; mas é sempre adequado usar as formas
específicas.
Pauliceia
– A cidade de São Paulo pode não ser o melhor lugar do mundo
para viver; muito pelo contrário, viver em São Paulo é difícil,
pois são muitos os problemas enfrentados diariamente por seus
habitantes, e esses problemas estão distantes de uma solução: o
trânsito caótico, o insuficiente sistema de transportes, a educação
pública, a segurança, a saúde e outros serviços que não agradam à população
têm sido, até agora, o preço a pagar pelo crescimento rápido e
sem controle da Pauliceia. Por outro lado, a cidade tem sido local de
oportunidades inumeráveis para seus moradores antigos ou para os
recém-chegados, que a ela se dirigem em busca de uma vida melhor.
São Paulo pode não ser tão cosmopolita quanto pensam e querem seus
moradores, mas é inegavelmente a mais cosmopolita das cidades
brasileiras, e isto tem sido demonstrado, nas últimas décadas,
pela diversidade cultural que abriga e pelas mudanças ocorridas na cultura paulistana e em suas práticas
políticas.
A
cidade de São Paulo não foi a primeira, no Brasil, a ser chefiada
por uma mulher; mas a eleição de Luiza Erundina, em 1988, chamou a
atenção do Brasil, entre outras coisas, por se tratar de uma
migrante nordestina (Erundina é paraibana). Já Celso Pitta (1946-2009) não foi o
primeiro negro a ser prefeito de São Paulo; mas, ao eleger Pitta,
São Paulo escolheu um prefeito negro e carioca. Será que outras cidades
elegeriam um paulistano como prefeito? Erundina e
Pitta são exemplos de que o eleitor paulistano, ao contrário do que
se pensa, é capaz de votar em propostas, independentemente da origem
dos indivíduos que as defendem.
Durante sua gestão, Erundina nomeou o pernambucano Paulo Freire (1921-1997), que dispensa
apresentações, para dirigir a Secretaria de Educação do Município
de São Paulo. Sua gestão daquela secretaria foi criticada por
questões ideológicas, mas não por sua origem.
Ainda
no campo educacional: os quadros das universidades estaduais
paulistas (USP, Unesp, Unicamp) estão repletos de professores e
pesquisadores oriundos de outros estados, os quais foram aprovados em
concursos e dedicam-se ao ensino e à pesquisa, sem que se questione
de onde vieram. Vale o mesmo para o alunado, pois o vestibular das
universidades paulistas (custeadas pelos impostos recolhidos pelos
paulistas, frise-se isto) é aberto a pessoas de todos os cantos do
Brasil e também do exterior. Diga-se o mesmo dos cursos de
pós-graduação.
Luiza Erundina e Celso Pitta: filhos de outras terras, governaram a cidade que os acolheu
O
estado de São Paulo e sua capital sempre foram muito receptivos a
migrantes, que encontram aí oportunidades que talvez não
tivessem em seus estados natais; entre os migrantes se incluem também políticos. O piauiense Frank Aguiar, os
cearenses José Genoíno e Tiririca, o alagoano Aldo Rebelo, o
pernambucano Roberto Freire e o já falecido acriano Eneias
Carneiro (1938-2007) foram eleitos deputados federais por São Paulo; José
Genoíno quase se elegeu governador paulista, tendo chegado ao segundo turno,
e Frank Aguiar é hoje vice-prefeito de um dos mais ricos e importantes municípios
paulistas, São Bernardo do Campo. Já Roberto Freire, depois de uma
carreira longa em Pernambuco, tendo sido, inclusive, senador por seu estado natal, migrou
para São Paulo e foi eleito. Outro exemplo é o ex-presidente Fernando Collor de
Mello, que nos anos de 1990 foi candidato a prefeito da capital
paulista. Os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso (fluminense) e
Luís Inácio Lula da Silva (pernambucano) também construíram suas
carreiras políticas em São Paulo. Em época mais recuada, políticos
como o fluminense Washington Luís e o sul-mato-grossense Jânio
Quadros fizeram carreira nas urnas paulistas – ambos foram
prefeitos da capital, governaram o estado de São Paulo e presidiram
a República, além de ocuparem cargos legislativos.
Washington Luís (1869-1957), o Paulista de Macaé
Não
consta que os políticos citados acima tenham recebido votos apenas
de seus conterrâneos residentes em São Paulo.
O cosmopolitismo paulistano mostra-se também, como seria de esperar, no campo cultural. Em 2004, aquando das comemorações dos 450 anos da cidade de São Paulo, foi convidada a baianíssima Daniela Mercury para cantar o hino comemorativo daquele evento; não me lembro de nenhuma reclamação de quem quer que fosse em relação a isso. Por que escolheram Daniela Mercury eu não sei (talvez uma homenagem ao Nordeste – está na moda); cantoras há também em São Paulo, e talvez tal fato tenha gerado ciúme em alguma delas (é uma suposição minha), mas ninguém se importou com a escolha. Será que em outros lugares se chamaria uma cantora de fora para tal solenidade?
O cosmopolitismo paulistano mostra-se também, como seria de esperar, no campo cultural. Em 2004, aquando das comemorações dos 450 anos da cidade de São Paulo, foi convidada a baianíssima Daniela Mercury para cantar o hino comemorativo daquele evento; não me lembro de nenhuma reclamação de quem quer que fosse em relação a isso. Por que escolheram Daniela Mercury eu não sei (talvez uma homenagem ao Nordeste – está na moda); cantoras há também em São Paulo, e talvez tal fato tenha gerado ciúme em alguma delas (é uma suposição minha), mas ninguém se importou com a escolha. Será que em outros lugares se chamaria uma cantora de fora para tal solenidade?
Não incomoda a ninguém, também, o fato de a célebre Sinfonia Paulistana, obra tão
representativa da cidade de São Paulo, ser obra de um paraense, Billy Blanco. Qual
problema haveria nisso, afinal? Homenagens não se recusam.
Um
dos principais símbolos paulistas, a bandeira estadual, foi criado
por um mineiro, Júlio Ribeiro, jornalista, romancista e gramático,
em 1888. Era o pavilhão do movimento republicano em São Paulo,
criado para ser a bandeira do Brasil republicano; hasteada no lugar
da bandeira do Império do Brasil, logo após chegar à província
paulista a notícia da proclamação da República, serviu de
bandeira provisória do novo regime em São Paulo até a instituição
da bandeira atual, em 19 de novembro de 1889. Será que algum
paulista pleitearia a substituição da bandeira estadual, apenas por ter sido
criada por um filho de Minas Gerais?
A bandeira do estado de São Paulo e seu idealizador, Júlio Ribeiro (1845-1890): símbolo paulista criado por um mineiro
Dimenstein
e a baianidade – Gilberto Dimenstein foi taxado de racista,
xenófobo, antinordestino; mas creio que tudo isso foi um exagero, um engano motivado pela leitura superficial, pouco atenta e apressada, combinada com o
desejo de achar preconceito em todo o lugar. Afinal de contas, quem procura, sempre acha...
Basta ler o artigo que deu início à polêmica, e a tréplica, para perceber que,
ao contrário do que disseram, Dimenstein considera positiva a
escolha de Juca Ferreira como secretário, por vários motivos que expôs; e por seu cosmopolitismo, São Paulo sempre se mostrou aberta a iniciativas como esta, apesar do pouco reconhecimento que recebem.
Criticou-se
ainda, no texto de Dimenstein, o uso da palavra baiano,
sob a alegação de que, em São Paulo, é termo pejorativo; e
é mesmo: além de ser usado
como genérico para os nordestinos em geral, tem um
sentido próximo de
“provinciano”. Mas... e se Juca Ferreira fosse gaúcho,
mineiro ou paraense? Não se levantariam também, talvez, questões sobre
supostas conotações desses gentílicos? Em alguns lugares, o termo
paraíba é usado com o mesmo sentido pejorativo que tem a
palavra baiano em São Paulo, e não vejo movimento tão forte
contra seu uso.
Se há pessoas que se incomodam com usos pejorativos da palavra baiano, sempre há uma
opção: segundo os dicionários, a Bahia tem outro gentílico, baiense, substantivo e adjetivo de dois gêneros, variável apenas em número; assim como baiano, baiense significa “da Bahia;
típico desse estado ou de seu povo”.
De minha parte, pelo menos, o problema está resolvido: uma de minhas avós era natural da Boa Terra, e a partir de agora, conforme a situação e ao gosto do freguês, poderei dizer que tive uma avó baiense ou baiana.
Este texto foi produzido e postado por meio de softwares livres: sistema operacional Linux Mint 13; processador de texto LibreOffice 3.6.0.2; navegador de Internet Mozilla Firefox 19.0. Conheça, prestigie, divulgue o software livre.
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