sexta-feira, 15 de março de 2013

Algo de podre em Copenhague – ou será que Andersen escrevia em inglês?

Hans Christian Andersen em 1869.
Foto de Thora Hallager.
Fonte: Wikipedia.
I. Napoleão Mendes de Almeida, o mais notório e polêmico gramático brasileiro do século XX, tinha como rotina, ao ler os jornais, anotar os deslizes de escrita da imprensa, os quais serviam de mote para sua coluna de muitos anos, "Questões Vernáculas", n'O Estado de S. Paulo. Aliás, o próprio Estadão era uma das vítimas costumeiras do lápis de Napoleão, que não poupava ninguém quando se tratava de corrigir erros gramaticais. Napoleão gostava de apontar principalmente os erros cometidos por “portadores de anel de grau”, ou seja, gente com curso superior – que diria ele, hoje, sobre como escrevem portadores de mestrado e doutorado? Os trechos das reportagens ou artigos, depois de recortados, anotados quanto a seus erros de pontuação, ortografia etc. e xerocopiados, eram distribuídos aos alunos do Curso de Português por Correspondência, que existiu durante 68 anos. Era o material paradidático dos alunos de português.

Passa longe de mim, por vários motivos, a ideia de comparar-me a Napoleão Mendes de Almeida. Apesar de ter trabalhado em seu curso durante sete anos, discordo de muitas de suas opiniões sobre língua, linguagem e gramática, e concordo com outras, que considero oportunas, pertinentes e coerentes. Diga-se, de passagem, que os gramáticos raramente concordam uns com os outros a respeito de todos os pontos de gramática, pois muito do que se diz nos compêndios é fruto da opinião do autor (opinião baseada em interpretações pessoais dos fatos gramaticais), podendo ser contradito por meio de exemplos de autores clássicos: para muito exemplo de autor clássico que abone alguma regra (melhor seria, neste caso, dizer norma, conforme a lição do linguista romeno Eugenio Coseriu), há sempre um contraexemplo de autor clássico a desaboná-la.

II. Não quero imitar Napoleão Gramático, mas não resisti à tentação de também recortar uma nota jornalística para criticar lapsos (?) grosseiros. É por isso que este artigo não é sobre as teorias e métodos de Napoleão Mendes de Almeida ou Eugenio Coseriu, mas sim sobre uma notícia que li no número 16 de Metáfora, revista de literatura, educação e cultura. Na seção Toques, página 8, lê-se que foi encontrado um manuscrito inédito do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen; trata-se de autógrafo de outra pessoa, mas é, segundo especialistas, o primeiro conto infantil de Andersen.

Até aqui, vai tudo bem, obrigado – nada de podre no reino da Dinamarca... O problema começa quando se lê o nome do suposto primeiro conto do autor dinamarquês: The Tallow Candle, assim mesmo, em inglês. Em inglês? Sim, está em inglês o título – mas não deveria estar.
Metáfora, ano II, nº 16, página 8

Muitos poderão pensar: Mas na Dinamarca não se fala inglês? De fato, muitos lá sabem inglês; trata-se de um país altamente desenvolvido (uns diriam civilizado, mas isto está fora de moda, além de ser antropologicamente incorreto), cujo avançado sistema educacional proporciona a seus cidadãos a oportunidade de aprender, já na escola básica, línguas estrangeiras, mais notadamente o inglês – no passado era o francês, língua internacional até a II Guerra Mundial, além do alemão, língua do vizinho poderoso do sul.

Isso me lembra a personagem Macabeia do romance A Hora da Estrela, de Clarice Lispector: na história lemos que nem se passava pela cabeça de Macabeia a ideia de que se pudesse falar outra língua – muita gente, aliás, ao ouvir estrangeiros falando, acha que eles “enrolam a língua”. Um dos vícios mentais dos dias de hoje – partilhado por gente de nenhuma, pouca ou muita instrução – é pensar que, fora da América Latina e da Ibéria (incluindo-se aqui a França e a Itália, por afinidade e contiguidade), todo o mundo fala inglês, menos nós, pobres brasileiros monoglotas e apegados a uma língua emprestada de segunda classe – e muitos ainda entendem a ideia de “falar inglês” como não saber falar outra língua além desta.

Um de nossos mais prestigiados filósofos da cultura popular, que faustonicamente enche a tela da TV em nossas tardes de domingo, afirma que “o português não é língua, é código secreto”, e esta asserção parece ter-se entranhado na mente dos brasileiros, que têm vergonha de sua própria língua.

III. A língua nacional e oficial da Dinamarca é o dinamarquês ou danês, idioma germânico pertencente ao grupo setentrional, do qual também fazem parte o norueguês, o islandês e o sueco (o finlandês, apesar de próximo geograficamente das aqui citadas, não é língua germânica, nem mesmo indo-europeia). Por que, afinal de contas, se na Dinamarca se fala dinamarquês e Hans Christian Andersen compôs sua obra em dinamarquês, fez-se referência ao conto com o nome em inglês? É claro como o Sol: a notícia foi lida em inglês (talvez aqui) e citou-se o nome do conto nesta língua, sem a menor preocupação de saber se o título original é aquele mesmo – é possível ainda que o redator da nota da revista Metáfora nem saiba que há uma língua dinamarquesa. Até se compreende que alguém de pouca instrução não saiba dessas coisas... Mas alguém com curso superior desconhecer essas informações é algo que não se pode conceber. Uma leitura mais atenta e uma consulta mais demorada mostrariam que o nome do texto A Vela de Sebo na língua original é Tællelyset.

A coisa, porém, não acaba aqui. Não sei se Shakespeare tinha razão ao dizer que havia algo de podre no reino da Dinamarca, mas parece que, no Brasil, a palavra Copenhague apodrece... Vira e mexe, ao se noticiar um fato ligado à capital da Dinamarca, faz-se referência a ela como Copenhagen; indagados, os que assim fazem dizem que estão usando o nome original da cidade, e que é este o modo correto de proceder, devendo ser citado o nome em sua forma original.

IV. Santo engano, Batman! – diria com certeza o Menino-Prodígio... São dois grosseiros equívocos numa só explicação. Se nossa língua possui termo próprio para designar país, cidade ou localidade estrangeira, esse é o nome que se deve usar, e não o original. Trata-se de tendência das línguas, que adaptam os termos estrangeiros à sua fonologia, fonética e ortografia, além de morfologia, como ocorreu com todos os idiomas, por isso também com o português: quem reconhece em sinuca e chulipa os originais ingleses snooker e sleeper? Pois é, são o resultado de adaptação fonética e posterior configuração ortográfica.

Outro exemplo: Em português, os nomes hebraicos Shlomo, Shmuel, Shoshannah, Shaul e Gershon assumiram as formas Salomão, Samuel, Susana, Saul ou Saulo e Gérson, respectivamente, e isto não foi sem motivo: estes nomes passaram do hebraico ao grego, deste ao latim e daqui para nossa língua; como em grego e latim não havia fonema correspondente ao hebraico ש (shin, letra que representa o fonema equivalente ao nosso X de xarope ou CH de chapéu), ele assumiu a forma mais próxima, /s/, grafado em grego Σ e em latim S, e assim passou ao português e outras línguas. O mesmo ocorreu com os nomes Jesus e Josué, ambos provindos de Yeshua, variante de Yehoshua.

V. Já tive oportunidade de tratar deste assunto em outros dois artigos publicados neste mesmo blogue (aqui e aqui). Para as principais localidades da Europa (para ficarmos apenas nessa parte do Velho Mundo), o português e as línguas europeias em geral têm formas próprias vernáculas, sem a necessidade de usar as formas estrangeiras; no caso de Copenhague, o deslize é ainda mais grave, pois quem usa Copenhagen diz estar usando a forma original, o que é falso, porque esta é a forma inglesa – o nome da capital da Dinamarca na língua do país, isto é, o dinamarquês, é København! (Para tirar isto a limpo, basta consultar aqui a página sobre essa cidade na Wikipédia em dinamarquês.)

Em português, portanto, devemos usar as formas Copenhague (no Brasil) ou Copenhaga (em português europeu). É sabido que alguns nomes tradicionais, não sei por que motivo, vêm caindo em desuso, sendo substituídos em português, principalmente na mídia, pelas formas originais ou em inglês (que os desavisados julgam ser as “originais”) – daí o procedimento se espalha para o grande público, que não é fã de consultas a dicionários e enciclopédias.

VI. Segue abaixo uma pequena lista com alguns nomes geográficos estrangeiros que costumam aparecer na imprensa, seguidos das formas vernáculas correspondentes (em negrito), que são as que devemos preferir; algumas de fato só se usam em Portugal, mas usá-las não é erro, embora muita gente vá torcer o nariz – na dúvida, sendo possível, de acordo com a necessidade de clareza, prefira-se sempre a forma tradicional:

Amsterdam – Amsterdã, Amsterdão (Holanda)
Bavária – Baviera (Alemanha)
Beijing – Pequim (China)
Belarus – Bielorrússia
Berlin – Berlim (Alemanha)
Bern – Berna (Suíça)
Bonn – Bona (Alemanha)
Budapest – Budapeste (Hungria)
Dublin – Dublim (Irlanda)
Frankfurt – Francoforte (Alemanha)
Geneva – Genebra (Suíça)
Guangzhou, Guangdong – Cantão (China)
Helsinki – Helsinque, Helsínquia (Finlândia)
Jersey – Jérsei, Jérsia (Grã-Bretanha)
Leipzig – Lípsia (Alemanha)
Mainz – Mogúncia (Alemanha)
Moldova – Moldávia
München – Munique (Alemanha)
Nanjing, Nanking – Nanquim (China)
New Jersey – Nova Jérsei, Nova Jérsia (EUA)
New York – Nova Iorque (EUA)
Pennsylvania – Pensilvânia (EUA)
Philadelphia – Filadélfia (EUA)
Roterdam – Roterdã, Roterdão (Holanda)
Shanghai – Xangai (China)
Stuttgart – Estugarda (Alemanha)
Taipei Taipé (Formosa)
Taiwan – Formosa
Tchetchênia – Chechênia
Tokyo – Tóquio (Japão)
Toullouse – Tolosa (França)
York – Iorque (Grã-Bretanha)
Zurich – Zurique (Suíça)

P. S.: Acho que esta noite me baixou o espírito de algum gramático bem brabo. Vou providenciar uma sessão de descarrego com o pastor Marcos Bagno. Só não posso esquecer-me de nossa bíblia: Cours de Linguistique Générale de Ferdinand de Saussure!

Santarém, Pará, 15/3/2013. Editado em 29/5/2015.

sexta-feira, 1 de março de 2013

André Gondim, um brasileiro que não desistia nunca!


“Doe, doe sangue, doe tempo livre, seja doador, seja eterno!”
André Gondim Pereira 
Lembro-me, dos tempos de escola primária, que todos os anos, no mês de agosto, organizava-se o Mês do Folclore, dedicado aos mitos e crendices brasileiros: mula sem cabeça, saci, curupira, o boto que se torna homem para seduzir mocinhas... Gostávamos muito disso: fazíamos trabalhos tematizados, colagens em cartolina, fantasias de personagens folclóricos etc.
Como se sabe, o termo folclore é de origem inglesa (folklore), designando o conjunto das manifestações populares e tradições do povo, e também o estudo dessas manifestações e tradições; mas se engana muito quem pensa que os mitos e crendices estão estacionados no tempo e permanecem sempre os mesmos. Dizia, e com razão, o folclorista paulista Alceu Maynard Araújo: “O folclore é uma vivência” (In: Medicina Rústica. São Paulo: Cia. Editora Nacional). Portanto, assim como os mitos se transformam com o passar do tempo, adaptando-se a novos contextos, também se criam novos mitos.
Cito como exemplo um mito recentemente surgido, a ideia de que o brasileiro nunca desiste: “Fulano é brasileiro e não desiste nunca!” Nada mais falso: é claro que há muitos brasileiros que nunca desistem de nada (e alguns se tornam inconvenientes por isso), além de haver muitas pessoas que nunca desistem e não são brasileiras; mas dizer que, por ser brasileiro, alguém nunca desiste, é um pouco forçoso... Não parece lema ou slogan criado como parte de estratégia comercial?
Não apenas parece, como é; e é também mais um dos muitos mitos que se criaram na cultura brasileira, formando ao lado da suposta amabilidade e do sex appeal natos dos brasileiros, da democracia racial, da crença de que “Deus é brasileiro” ou de que tudo é permitido abaixo da linha do Equador etc.
Calma, leitor... O tema deste artigo, de fato, não é folclore, mitos ou crendices populares ou criadas pela mídia; trato aqui da história real de um brasileiro que, de fato, nunca desistiu: André Gondim.
Não o conheci pessoalmente; aliás, só soube de sua existência após sua morte. Em dezembro de 2011, eu acabara de instalar em meu computador o Linux Mint, sistema operacional baseado em GNU/Linux (ou simplesmente Linux, como é mais conhecido), e navegava pela Internet em busca de informações e dicas sobre o uso deste e outros sistemas Linux. Cheguei, então, ao blogue “Aprendendo e compartilhando no Ubuntu” (http://andregondim.eti.br/ - atualmente inativo), mantido por André Gondim, e vi, logo na entrada, uma nota de falecimento, com o título “sudo apt-get install descanse-em-paz-guerreiro”, postada ali por um amigo.

Procurei mais informações sobre ele e fiquei impressionado com o trabalho desse rapaz, que, a despeito dos problemas de saúde que enfrentou, deixou importante obra como um dos principais colaboradores e representantes, no Brasil, do sistema operacional Ubuntu, o mais conhecido dos sistemas operacionais baseados em Linux e um dos mais usados no mundo.
André Gondim Pereira nasceu em Campina Grande, Paraíba, em 1982. Mudou-se ainda na infância para Rondônia. Aos 13 anos, voltou a residir na Paraíba e, aos 21, transferiu-se para Porto Alegre, RS, em busca de tratamento de saúde – sofria de fibrose cística e acabou por submeter-se a transplante de pulmão, em 2008. Ainda no hospital, André postou em seu blogue uma mensagem de fé e esperança.
O transplante trouxe novo alento a André Gondim, que no mesmo ano se casou e continuou, com ainda mais afinco, dedicando-se ao trabalho e ao software livre. Em fins de 2011, porém, o órgão transplantado sofreu rejeição, e André não teve tempo de submeter-se a novo transplante, falecendo no dia 3 de novembro daquele ano. Tinha 29 anos.
André tomou contato com a informática aos sete anos, mesma época do diagnóstico de sua doença, e veio a tornar-se, como dito acima, um dos principais conhecedores do Ubuntu; seu blogue foi, por vários anos, fonte de aprendizado para muita gente que se iniciava no Ubuntu e no software livre.
A morte de André Gondim Pereira constituiu grande perda para a comunidade de usuários de Linux no Brasil, o que se demonstra pela repercussão que teve na mídia especializada e até em outros veículos, como o jornal Folha de S. Paulo. Mas seu exemplo, sua obra e seus ensinamentos persistem e sem dúvida continuarão no coração dos que o conheceram e daqueles que beberam de seu conhecimento.
André Gondim dedicou sua vida ao software livre e ao Linux, assuntos de que foi grande conhecedor; dedicou também suas horas vagas à difusão desse conhecimento, sem pedir nada em troca. Foi, de fato, um brasileiro que não desistiu nunca. Verdadeiramente um exemplo a ser seguido.
“Bonum certamen certavi, cursum consumavi, fidem servavi.”
(“Eu combati o bom combate, terminei a carreira, mantive a fé.”) – II Timóteo IV, 7.