quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Hóquei, handebol e hanseníase



Dentro do espírito esportivo e olímpico já instalado entre nós, faltando cerca de um ano e meio para a Olimpíada do Rio de Janeiro, toco num assunto que me vem à mente muitas vezes, quando acompanho transmissão de disputas esportivas internacionais e contagem de medalhas. A febre olímpica que toma conta da mídia na época dos jogos me faz refletir sobre a dificuldade que têm os professores de português em seu papel de conduzir os alunos ao domínio das normas de pronúncia e grafia da língua culta, pois esse ensino é, todo o tempo, desautorizado e desmentido pelo “descuido” de parte da imprensa, descuido que é motivado por problemas estruturais de nossa educação e cultura.

Antes de explicar o que quero dizer com isso, revisemos um aspecto ortográfico de nossa língua portuguesa.

Em sua maioria, as palavras portuguesas começadas com a letra H são de origem latina ou grega. Os próprios latinos já a usavam para representar o fonema /h/, e também para transliterar o sinal conhecido como espírito áspero (ʽ), que representa na ortografia grega, no início das palavras, o mesmo /h/. Com a difusão do alfabeto latino, o H passou a ser usado na escrita de várias línguas, entre as quais as germânicas (inglês, alemão, holandês etc.) para representar esse fonema ou algum outro semelhante a ele.

Na ortografia portuguesa, assim como na castelhana, italiana, francesa e catalã, a letra H é um sinal sem nenhum valor fonológico, isto é, não representa fonema (é claro que não é isso o que ocorre quando essa letra toma parte dos dígrafos CH, LH e NH, que representam fonemas — mas não trataremos disso aqui). Nas palavras em que se emprega o H isolado – sempre no início delas –, trata-se de um sinal etimológico, isto é, um indício de que, no étimo (palavra de que se originaram outras), havia o fonema /h/: é o caso das palavras hoje, homem, hífen, hermético, hiato, híbrido, herói, Hélade, heleno, Hermengarda, hélice, hálito, húmus, Hamburgo, hambúrguer, Hércules e muitas outras. O fonema representado em inglês, alemão e outras línguas pela letra H não existe em português, e o H português, sozinho, não representa fonema algum, motivo pelo qual as palavras iniciadas em português com essa letra soam como se fossem iniciadas por vogal.

Nos programas jornalísticos e esportivos, porém, alguns nomes iniciados por H são pronunciados à maneira anglo-saxã, isto é, lê-se a palavra como se fosse inglesa ou alemã, mesmo quando é grafada conforme as normas do português. Observei isso durante os noticiários esportivos, pois os locutores e apresentadores, sem exceção, pronunciavam os nomes hóquei e handebol com uma consoante inicial aspirada, inexistente em nossa língua, apesar de esses nomes aparecerem grafados de forma correta (nessas situações que observei, a palavra handebol tem também a sílaba tônica deslocada, de oxítona para proparoxítona). 

Trata-se de uma grande confusão, em que vemos raríssimo fenômeno de palavras com grafia vernácula e pronúncia estrangeira (fenômeno que é como jabuticaba, isto é, só existe no Brasil). O que ocorre geralmente é o contrário disso: quando um vocábulo estrangeiro entra em nossa língua, tornando-se de uso corrente, ele se adapta ao nosso sistema fonológico-fonético, ou seja, acomoda-se a nosso sistema fonológico e a nossos hábitos de pronúncia. Mais tarde, adapta-se a palavra à nossa ortografia: nossa pronúncia vernácula de palavras como football, baseball, abat-jour, surf, club, sleeper e snooker é que levou às grafias portuguesas futebol, beisebol, abajur, surfe, clube, chulipa e sinuca, respectivamente; estas palavras são e devem ser, portanto, pronunciadas portuguêsmente, como as demais palavras de nossa língua que com elas se parecem. 

Até mesmo os documentários de televisão, dos quais se esperaria mais cuidado com o texto, apresentam as mesmas confusões de pronúncia. É irritante assistir a um documentário dublado na TV e ouvir o locutor, ao se referir às "hostes turcas que cercavam Constantinopla", pronunciar a palavra hostes (lê-se [óstes]) como rostes

Por quê? Onde ele aprendeu isso? Ainda se fosse numa conversa espontânea e informal, poder-se-ia relevar o deslize. Mas ouvir isso num texto que foi traduzido e depois lido em estúdio por um profissional de dublagem é indicação de falta de preparo. 

G. H. A. Hansen (1841-1912),
descobridor da causa da hanseníase.
Fonte: Wikipedia.
Também digna de nota é a pronúncia do termo hanseníase, até mesmo na publicidade dos órgãos públicos de saúde: conquanto se costume pronunciar à inglesa o nome do descobridor do bacilo de Hansen – na verdade, era norueguês –, o nome da doença causada por aquele micro-organismo tem grafia e pronúncia vernáculas; portanto, em nossa língua, o H de hanseníase não “soa”, ainda que isso não seja respeitado pela imprensa. Quem não gosta do nome lepra, devido a toda a carga pejorativa que essa palavra traz, sinta-se então à vontade para usar, em seu lugar, hanseníase, mas a pronúncia é [anseníaze]. Outra opção é dizer mal de Hansen – aqui se pode pronunciar o H, mas não em hanseníase.

E mais: tais deslizes de prosódia atingem até mesmo palavras de outras línguas, pois nomes de origens diversas são, na imprensa, pronunciados como palavras inglesas. Nos dias de hoje, graças ao grande avanço tecnológico das comunicações, as notícias chegam de todos os pontos do mundo, e, apesar de haver milhares de línguas — e também por causa disso —, as agências de notícias distribuem os textos em inglês, língua internacional do momento (!?); pelo que seria pedir demais, além de pedante, querer que as pessoas, mesmo que cultas, saibam pronunciar todos os nomes estrangeiros conforme as línguas de origem. Compreensível. 

Mas quando essa anglicização chega ao cúmulo de nomes espanhóis e franceses serem pronunciados como se fossem palavras inglesas, não sei o que dizer. Nós brasileiros, que tanto admiramos os povos de língua inglesa e nos esforçamos para ser como eles, poderíamos imitá-los também nisso: não ter vergonha de pronunciar nomes estrangeiros conforme a fonologia/fonética de nossa língua, pois se há uma coisa de que os anglófonos não têm vergonha é de sua língua, e não têm vergonha também de pronunciar os nomes estrangeiros à sua própria maneira, sem se importar com o que os outros pensam ou dizem. 

Para arrematar este ponto: em português, as palavras iniciadas com H — inclusive nomes geográficos, como Hanói (cidade vietnamita) — devem ser pronunciadas como se iniciadas com vogal, pois esse H é apenas um sinal etimológico. 

Concluo este artigo falando do nome da capital chinesa. 

Muitos nomes geográficos, conhecidos do grande público há pouco tempo, não têm forma vernácula portuguesa; neste caso, o que podemos fazer é grafá-los de acordo com a grafia de origem ou conforme a transliteração mais usual na imprensa internacional (no case de línguas que não utilizem o sistema de letras latinas). Mas quando há formas portuguesas já estabelecidas, estas é que devem ser usadas, pois, além de tradicionais, são as que encontramos nas enciclopédias, dicionários e outras obras de referência. 

Parece que a “descoberta” da língua inglesa por alguns tradutores e jornalistas brasileiros despejou em nossa imprensa grande número de nomes ingleses de países, cidades, localidades etc., totalmente desnecessários. É o caso de Beijing, transcrição, em letras latinas, do nome da capital da China. O nome dessa cidade, em português, há muito tempo é Pequim, e temos formas portuguesas para diversos nomes de localidades chinesas: Tibete, Cantão, Xangai, Macau, Taipé (capital de Formosa, ilha independente mais conhecida como Taiwan), Nanquim, Manchúria, nomes que podemos usar sem medo de errar ou passar por retrógrados (este parece ser o medo de muita gente). 

Estes nomes estão no português há séculos — lembremo-nos de que os portugueses foram os primeiros europeus modernos a chegar ao Extremo Oriente (Índia, Indochina, China e Japão), e muitos termos oriundos de línguas orientais entraram nas línguas europeias trazidos pela língua portuguesa. 

Mas parece que toda essa antiguidade cultural e linguística, de que outros povos sentiriam orgulho, tornou-se motivo de vergonha, e o cuidado de escrever respeitando as normas e tradições de grafia e pontuação tornou-se cafonice. É notável, ainda que lamentável. 

Em futuro artigo continuarei este assunto, tratando de alguns nomes geográficos e suas formas portuguesas.

Santarém, Pará, 23/8/2012. Editado em 14/3/2017.

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quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Capes na Rio +20: livro disponível em PDF

Está disponível para download gratuito, em formato PDF, o livro Contribuição da Pós-Graduação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável: Capes na Rio +20, lançado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) durante a Conferência Mundial da ONU sobre o Desenvolvimento Sustentável Rio +20, ocorrida de 13 a 22 de junho de 2012 na cidade do Rio de Janeiro.

A Capes foi convidada pela organização da conferência para elaborar uma síntese do avanço do conhecimento, pesquisa e formação de recursos humanos desenvolvidos nos programas do Sistema Nacional de Pós-Graduação. O livro, publicado em português e inglês e distribuído durante a Conferência, é baseado nos textos que constam no Plano Nacional de Pós-Graduação 2011-2020, também editado pela Capes e Ministério da Educação (MEC).


terça-feira, 21 de agosto de 2012

Altamiro Carrilho, que saudade!



“Quando olhar para um músico, olhe com carinho.”
Altamiro Carrilho (1924-2012)

Há poucos dias, em 15 de agosto, faleceu, aos 87 anos, Altamiro Carrilho, um dos maiores compositores e músicos do Brasil. E também um de nossos maiores chorões, pois dedicou toda a sua vida ao choro ou chorinho, ritmo brasileiro muito estimado no exterior, mas ainda tão pouco apreciado pelos próprios brasileiros. Tenho um disco de Altamiro Carrilho e seu Regional, Os Maiores Choros do Século – que estou ouvindo agora, diga-se de passagem –, e me acho sortudo por isso, pois ouvi-lo tocar suas composições ou as de outros autores é um privilégio que não tem paga.


Não conheço nada de música, aliás sou leiguíssimo nisso, mas tenho a seguinte opinião, ou, mais precisamente, impressão: o chorinho é o ponto mais alto de nossa música, de nossa cultura musical, pois nele se contém a síntese de nossas origens históricas e culturais; é ao mesmo tempo popular e erudito. Popular, por motivos óbvios, devido a suas origens, o uso de instrumentos musicais mais populares, a temática ligada à cultura popular e ao cotidiano, a qual se traduz, por exemplo, nos nomes dos choros, como André de Sapato NovoUrubu Malandro ou Tico-tico no Fubá; é erudito também pelos instrumentos, a harmonia entre as cordas e a percussão leve, a presença dos metais e dos instrumentos de sopro, como a flauta que consagrou Altamiro... Um programa composto só de chorinhos – Bem-te-vi Atrevido, Harmonia Selvagem, Odeon, Espinha de Bacalhau, Um a Zero, Carinhoso, Lamento, Brasileirinho e muitos outros mais – poderia ser apresentado por qualquer grande orquestra, seja a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo – OSESP ou a Orquestra Filarmônica Real de Londres (Royal Philarmonic Orchestra), e isso agradaria ao público em qualquer ponto do globo, levantando multidões.
No último domingo, dia 19, à noite, a TV Cultura de São Paulo reapresentou um programa da série Ensaio com Altamiro Carrilho, em que ele apresentou várias de suas composições e sucessos, além de contar algumas histórias de sua vida. Este era um lado pouco conhecido dele, pelo menos para mim: Altamiro era um grande contador de histórias, e como é gostoso ouvi-lo contá-las! Entre as histórias que contou, está a do choro Lamento de Pixinguinha (Alfredo da Rocha Viana Filho, 1897-1973). Segundo Altamiro, o grande compositor e seu grupo deviam apresentar-se num teatro e ao chegar foram impedidos de entrar pela porta da frente, pelo porteiro, que seguia ordens da gerência: “Negros só podem entrar pelos fundos”. Pixinguinha não criou caso e deu a volta ao prédio, entrando pela porta dos fundos. Após saber do ocorrido e de quem se tratava, o gerente e o porteiro foram pedir-lhe desculpas; Pixinguinha disse que lamentava o ocorrido e os perdoou; o lamentável episódio deu-lhe a inspiração para compor o famoso choro, que anos mais tarde recebeu letra de Vinícius de Morais.
No Ensaio, Carrilho homenageia vários músicos e compositores, num preito de gratidão: Pixinguinha, Benedito Lacerda, Garoto, Carlos Poyares e outros. Também fez um apelo pela valorização dos músicos: “Tocar um instrumento musical é difícil, leva anos de estudo. Por isso, quando olhar para um músico, olhe com carinho”. Sábias palavras!
Mas Altamiro se foi. Vá em paz, Altamiro Carrilho! Continue a tocar nas altas esferas! Nós lhe renderemos a justa homenagem que se deve a todo artista: prestigiar sua obra!

Este texto foi produzido e postado por meio de softwares livres: sistema operacional Linux Mint 13 Maya LTS; processador de texto LibreOffice 3.5.3.2; navegador de Internet Mozilla Firefox 13.0.1.
Conheça, prestigie, divulgue o software livre.